The Ressabiator

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Se não podes pô-los a pensar uma vez, podes pô-los a pensar duas vezes

Desironizar

Nos últimos dias, foi ocupada uma pequena biblioteca pública abandonada no jardim do Marquês no Porto. Tanto quanto se pode perceber, o processo é o mesmo usado na Escola da Fontinha: um edifício público devoluto é ocupado pacificamente, não apenas por pessoas mas por actividades próximas às  projectadas originalmente para aquele local. Aulas, actividades recreativas, espaços de leitura, tudo pontuado por assembleias populares.

Desde há anos que se vão fechando escolas, centros de saúde, linhas de comboio, bibliotecas, cinemas, por todo o país mas especialmente nas periferias, argumentado a poupança e racionalização dos recursos, o excesso de despesa pública. O que sobrou é um deserto pontuado por concentrações de recursos aqui e ali, cada vez menos acessíveis a quem viva fora dos centros, tenha menos dinheiro ou disponibilidade para navegar a burocracia toda.

Não admira muito que as greves já não tenham efeito. Privar as pessoas de um serviço, público ou não, por razões políticas é o que todos os nossos governos têm feito quotidianamente desde há anos. Muito mais eficaz é demonstrar que esses serviços fazem realmente falta e que podem ser activados facilmente, usando para isso as ruínas dos serviços públicos deixadas para trás pelos nossos governantes.

Iniciativas como a Biblioteca Popular do Marquês ou a Escola da Fontinha revelam as políticas de corte da despesa pública como a desistência nociva que realmente são. Não admira que provoquem reacções tão desproporcionadas por parte dos nossos governantes e autarcas.

Há uns anos, quando ainda estudava, lembro-me bem do regozijo dos funcionários e professores sempre que a escola era fechada por alguma greve de alunos. Era um feriado inesperado com pouquíssimas consequências para além das escassas notícias de jornal e dos protestos de um ou outro aluno que precisava mesmo de trabalhar.

Numa dessas ocasiões, concluí que a melhor maneira de subverter o sistema de ensino seria pô-lo realmente a funcionar. Ninguém estaria pronto para isso. Boa parte do que uma escola ou faculdade faz hoje em dia tem pouquíssimo a ver com ensino ou investigação mas com burocracia, racionalização de recursos e recolha de fundos, que poderíamos traduzir por papelada, turmas e horários grandes, e estágios não-remunerados. O ensino ou investigação é o que vai sobrando disso tudo.

É bastante simples ensinar e investigar fora do sistema, basta ir vendo, lendo, escrevendo e publicando sempre que possível, por todos os meios possíveis. Se fazer tudo isto for mais importante do que ter legitimidade para o fazer, nunca foi tão fácil: no meu caso, basta um computador e uma ligação à net.

Ao longo deste ano, a minha média de visitas diárias neste site é cerca de 633, quase 2000 no melhor dia e nunca descendo abaixo de trezentas. É bastante mais divulgação que a dúzia de exemplares de uma tese, por exemplo, com um público bastante maior que o de uma aula ou até conferência. E com bastantes mais efeitos e reacções do público.

Nominalmente, o Estado português paga-me para investigar, ensinar e publicar, mas retira-me cada vez mais condições para o fazer. O que eu faço por aqui é agarrar no dinheiro que me pagam  e utilizá-lo para fazer o serviço público para o qual me dizem que é destinado: investigar, ensinar e publicar, apenas da maneira mais simples, directa e eficaz.

Se palavras como “Estado”, “Ensino”, “Comunidade” ou “Público” se reduzem cada vez mais a chavões desprovidos de significado, se não mesmo irónicos por significarem o oposto do que dizem, o dever de cada cidadão é desironizá-los, reclamando-os para o seu significado original. É isso que as pessoas da Fontinha ou do Marquês têm feito brilhantemente: uma desironição estratégica de tudo o que é público.

Update: E enquanto escrevia o post a Brigada da Ironização Pública já fez o seu serviço.

Filed under: Crítica, Cultura, Economia, Ensino, Não é bem design, mas..., Política, Prontuário da Crise

3 Responses

  1. Clap, clap, clap… Bravo!
    A solução passa por aqui!
    Um abraço

    TM

  2. […] Alternativas? Claro que há. Em primeiro lugar, esqueçam a ironia. […]

  3. […] resistência activa e um inconsequente queixume, olhando paras acções desenvolvidas em torno da Escola da Fontinha ou da Biblioteca do Marquês, que foram realmente espinhos na imagem pública do autarca, e que foram reprimidas com violência […]

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