The Ressabiator

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Se não podes pô-los a pensar uma vez, podes pô-los a pensar duas vezes

As Fontes têm Memória?

Foi há uns meses que reparei no fenómeno. Tinha acabado de comprar um livro chamado Metro Letters – A Typeface for the Twin Cities, editado por Deborah Littlejohn em 2003, sobre o projecto de criação de uma fonte para as cidades de Minneapolis e St. Paul. Seis designers foram convidados, entre os quais Peter Bil’ak, Just von Rossum e Erik Blokland, e o resultado foi a família Twin, constituída por fontes de espessura uniforme, sem serifas, de desenho geométrico, embora com detalhes rebuscados e curvas exóticas. Na página 23 aparecia uma aplicação de uma das fontes, a Twin BitRound, ao título do jornal The Minnesota Daily que me fez lembrar bastante o jornal Futurismo de 1933, uma publicação claramente fascista com design de Enrico Prampolini.

Uma série de coisas que me incomodavam há algum tempo começaram a fazer mais sentido. Há cerca de um ano, a grande fonte institucional da moda em Portugal era a Din, usada e abusada para todo o tipo de serviço – o mais caricato talvez tenha sido a edição nacional do Guiness Book de 2004. Como alternativa, quando era preciso mais personalidade, apareciam diversas Clarendons, como no suplemento Y do Público ou na antiga imagem da Culturgest. Estas soluções foram usadas até à exaustão, até parecerem inevitáveis, até – finalmente – enjoarem.

Naturalmente, havia expectativas quanto à sucessão e uma corrente ganhava particular força: um grafismo neo-iluminista de paginação centrada usando fontes como a Garamond, a Mrs. Eaves e a Filosofia, aparecia em publicações influentes como a McSweeney’s ou a Emigre. Depois de décadas de texto assimétrico, justificado à esquerda, de inspiração mais ou menos suíça, a recuperação do eixo central não é surpreendente. Também não espanta o regresso ao passado depois de uma década de novas tecnologias, gráficos em pseudo-bitmap, anime ou 3D.

Por outro lado, fontes como a Twin, ou a Lux Sans, – usada pelos Gráficos do Futuro no design actual da Culturgest – anunciavam um revivalismo diferente: um regresso às fontes dos anos imediatamente anteriores à Segunda Guerra Mundial. A editora inglesa Penguin, por exemplo, também recuperou recentemente o seu grafismo típico dos anos trinta no novo design da colecção Reference Library (embora substituindo a Gill pela Futura). Mas, se em Inglaterra este design talvez lembre uma época particularmente feliz – os últimos anos como super-potência, coração do império, etc. – , aqui em Portugal ele traz à memória outros impérios e outros tipos de modernidade, mais embaraçosos e talvez até mais perigosos.

O design da nova revista Atlântico demonstra bem este novo estilo – e aquilo que ele evoca: o título aparece numa fonte não-serifada, de espessura uniforme e recorte decorativo; a paginação é centrada, recorrendo por vezes a caixilhos simples e filetes; os artigos são acompanhados exclusivamente por ilustrações de estilos variados. A Atlântico, faz lembrar certas revistas literárias portuguesas dos anos vinte e trinta, bem como as publicações fascistas italianas de que falámos mais atrás. É bastante provável que esta semelhança seja uma opção consciente – a Atlântico assume-se claramente como uma revista de direita.

Mas será que as fontes têm memória e o design gráfico está a recuperar inconscientemente estas soluções para representar a época em que vivemos? É uma pergunta inquietante, mas calculo que a resposta da maioria dos designers seja negativa. Para eles, o passado é apenas um catálogo de estilos “reutilizáveis” arbitrariamente – as fontes e os estilos não têm cor politica, são neutros, tal como os próprios designers.

De qualquer maneira, o design português actual está mal equipado para responder a este tipo de questão. Tendo aparecido pouco depois do 25 de Abril, com a criação dos cursos de design nas Belas Artes de Lisboa e Porto, nunca teve muita vontade de olhar criticamente para o passado. Limitou-se à gestão de uma modernidade importada do exterior, num esforço constante e frustrado de educar o país – ou pelo menos o cliente. Sempre procurou as suas soluções lá fora e, naturalmente, nunca imaginou que isso o trouxesse a lugares familiares, mas embaraçosos. Será que é mesmo possível regressar a estas fontes ignorando as associações históricas que trazem?

Filed under: Apropriação, Fontes, Política

14 Responses

  1. Freezahttp://www.nozes2.modblog.com diz:

    As coisas mudam de significado de tempos para tempos.
    Eu cá sou da opinião que se deve respeitar tanto os significantes como os significados das fontes, entre outras coisas. Mas a tendencia que se vive nos dias de hoje do “vintage” entre outros movimentos menos criativos remetem para o uso indeterminado das coisas. enfim o que se pode fazer?

  2. Freeza diz:

    As coisas mudam de significado de tempos para tempos.
    Eu cá sou da opinião que se deve respeitar tanto os significantes como os significados das fontes, entre outras coisas. Mas a tendencia que se vive nos dias de hoje do “vintage” entre outros movimentos menos criativos remetem para o uso indeterminado das coisas. enfim o que se pode fazer?

  3. Anonymous diz:

    E se em vez de falarmos de fonts, pensassemos em simbolos.
    Quem é que se atreve hoje a apresentar a suástica para qualquer coisa?
    Nós, como é bom da nossa profissão, estamos imersos no nosso conhecimento e não raras vezes olhamos para baixo para o resto da cultura.
    As imagens não se esquecem, a história é que por vezes as omite.

  4. João da Concorrência diz:

    Nos final dos anos noventa isso do exotismo já aconteceu como se pode ver aqui ou mesmo neste D.
    Mas neste post estás a falar disto que tem mais que ver com o a programação de tipos reactivos a variáveis externas à tradicional disciplina tipográfica. E isso é mais recente do que os ornamentos e decorativismos que sempre cá andaram, fosse na Bauhaus, ou num qualquer estilo fantástico.

  5. João da Concorrência diz:

    Nos final dos anos noventa isso do exotismo já aconteceu como se pode ver aqui ou mesmo neste D.
    Mas neste post estás a falar disto que tem mais que ver com o a programação de tipos reactivos a variáveis externas à tradicional disciplina tipográfica. E isso é mais recente do que os ornamentos e decorativismos que sempre cá andaram, fosse na Bauhaus, ou num qualquer estilo fantástico.

  6. João da Concorrência diz:

    Sou um “anti-iconoclasta”. E acredita que está na moda dizer-se o contrário… Mas não me desviando do assunto principal… Depois de uma conversa que tive contigo, apercebi-me que a verdadeira questão que estavas a levantar não tinha que ver com o factor novidade nem com questões de recuperação e transformação do design passado (embora esta problemática seja pertinente à tua questão). Levantas antes, mais dúvidas em relação à memória e às associações que fazemos das formas com as épocas e os contextos socio-culturais em que foram criadas ou utilizadas.
    Como compreenderás decerto, não te posso responder com a lucidez que desejava porque só nasci à pouco mais de duas décadas…
    Mas posso levantar a mesma questão com outro exemplo para contrapôr a ideia geral que acaba por sair do teu texto…
    Será que Gutenberg, ao inventar a tipografia, colocou os tipógafos contemporâneos na delicada situação de principais representantes de uma sociedade antropocentrista informada?
    Obrigado pela informação, porque eu nem sequer me tinha aprcebido que esse tipo de famílias vieram de tempos menos bons. Continua a acreditar assim na consciência dos designers e na do público consumidor. Tenho a certeza que essa espécie de fé será, a médio/longo prazo, frutífera…

  7. João da Concorrência diz:

    Sou um “anti-iconoclasta”. E acredita que está na moda dizer-se o contrário… Mas não me desviando do assunto principal… Depois de uma conversa que tive contigo, apercebi-me que a verdadeira questão que estavas a levantar não tinha que ver com o factor novidade nem com questões de recuperação e transformação do design passado (embora esta problemática seja pertinente à tua questão). Levantas antes, mais dúvidas em relação à memória e às associações que fazemos das formas com as épocas e os contextos socio-culturais em que foram criadas ou utilizadas.
    Como compreenderás decerto, não te posso responder com a lucidez que desejava porque só nasci à pouco mais de duas décadas…
    Mas posso levantar a mesma questão com outro exemplo para contrapôr a ideia geral que acaba por sair do teu texto…
    Será que Gutenberg, ao inventar a tipografia, colocou os tipógafos contemporâneos na delicada situação de principais representantes de uma sociedade antropocentrista informada?
    Obrigado pela informação, porque eu nem sequer me tinha aprcebido que esse tipo de famílias vieram de tempos menos bons. Continua a acreditar assim na consciência dos designers e na do público consumidor. Tenho a certeza que essa espécie de fé será, a médio/longo prazo, frutífera…

  8. Arauxo diz:

    As fontes têm história e ganham memórias por associação. As fontes têm carácter, espelham o mínimo demnominador comum de ideologias.
    Há alguma fonte “de esquerda”?

  9. João da Concorrência diz:

    Se entenderes a Tipografia como primeiro motor de democratização do conhecimento: sim, todas. Se não: penso que há algumas. Vê por exemplo isto ou isto. Se bem que qualquer uma que comtemple os cirílicos já avança muito sobre esse território. A Arial e a Times também podem ser de esquerda… ou nem tanto: anarco-capitalista será uma melhor categorização para todas as que vêm com os sistemas operativos.

  10. João da Concorrência diz:

    Se entenderes a Tipografia como primeiro motor de democratização do conhecimento: sim, todas. Se não: penso que há algumas. Vê por exemplo isto ou isto. Se bem que qualquer uma que comtemple os cirílicos já avança muito sobre esse território. A Arial e a Times também podem ser de esquerda… ou nem tanto: anarco-capitalista será uma melhor categorização para todas as que vêm com os sistemas operativos.

  11. Arauxo diz:

    Fui ver a Rubik e a Punk, e fico-me pelo Times. Qual era a fonte da 1ª edição do Capital?
    A ligação com os cirilicos é esclarecedora e a definição de anarco-capitalistas para as fontes de sistema é brilhante.
    Obrigado pelas informações.
    PS.
    Em dois posts no meu blogue -http://arauxo.blogspot.com/- sobre a Egoista e a Atlântico citei como comment devidamente assinalado excertos do teu blogue.

  12. Anonymous diz:

    Caro Ressabiador permita-me umas breves correcções.

    As fontes têm memória, assim como qualquer manifestação gráfica tem. Muitas vezes o uso e afirmações fora de contexto e de certo modo embaraçosas devem-se a uma certa ignorância.

    Just van Rossum e Erik van Blokland foram os criadores da família Twin. A família Twin tem muito pouco de ‘de desenho geométrico’ e os ‘detalhes rebuscados e curvas exóticas’ são fruto da forma como os estes type designers holandeses trabalham. A forma das letras é baseada em caligrafia pelo método de Gerrit Noordzij, nada têm de formas geométricas.

    Se reparar bem a forma das letras no jornal Futurismo é estritamente geométrico, não apresentam contraste de espécie alguma, quase modular. Twin é uma ‘Humanist Sans’ bem no estilo holandês e ainda mais no estilo de Erik van Blokland (You can always see Erik’s hand on is typefaces).

    Bom Trabalho.
    entropy

  13. Ressabiator diz:

    (Coloquei um exemplo da Twin Bitround no post anterior para servir de ilustração para quem não conheça a fonte).

    Escolhi o jornal Futurismo pela associação evidente com o fascismo, não sendo um dos melhores exemplos a nível formal. Apesar de tudo, a fonte do título tem alguns detalhes de sugestão caligráfica que fazem um contraste interessante com o tom geométrico da fonte (as ligaturas rebuscadas entre o “U”, o “R”, o “I”, o “S” e o “M”) e um bom conjunto com o retrato-logotipo do Mussolini.
    As fontes de espessura regular e detalhes decorativos (principalmente sugestões caligráficas) estiveram bastante na moda nos anos 30 no sul da Europa. Actualmente, têm sido alvo de interesse por parte de certo design do norte da europa. Por exemplo, Phil Baines recolheu inúmeros exemplos de lettering do género em Itália, Espanha e Portugal, considerando mesmo que são uma tipologia específica – cada um destes países era uma ditadura fascista na época.

    O propósito do meu artigo não é pôr em causa a criação ou recriação destas fontes, mas a sua importação acrítica e ahistórica. Se na Holanda estas fontes podem ser meros formalismos, se em Inglaterra podem ter apenas interesse antropológico, o seu uso aqui em Portugal assume evidentemente outro tipo de associação, uma vez que evocam o nosso próprio passado.

    tR.

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