No fim de Abril de 2007, num debate no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, sobre “O que significa ser artista em Portugal?”, a artista Isabel Carvalho acusou o Museu de Serralves de ignorar os artistas do Porto. À primeira vista, a acusação parecia paradoxal, talvez até injusta – afinal, era o próprio Museu que disponibilizava o espaço para aquele debate –, mas, na discussão que se seguiu (e que continuou nos blogues e, mais tarde nos jornais), tornou-se evidente que o que estava em jogo não era a falta de interesse do Museu na cena alternativa, mas o próprio papel do Museu em relação à cidade. Se Serralves não dedicava ao Porto mais do que uma atenção circunstancial, como podia esperar assumir algum protagonismo ali?
Durante a discussão, João Fernandes, director do Museu, manteve a sua posição, respondendo que não ignorava a cena alternativa do Porto, mas que não a iria promover apenas por ser local. Mantinha-se informado sobre ela, ia aos sítios e falava com as pessoas, mas, segundo ele, “um projecto como o Museu de Serralves afirma-se pela sua selectividade e essa selectividade é muitas vezes incompatível com um espaço de experimentação para um artista que está a começar a desenvolver as suas linguagens. Nessa medida, o facto de Serralves existir, suponho que é importante para todos, mas Serralves não responde às necessidades de apresentação de trabalho de muitos destes artistas. Seria desejável que o Porto tivesse um espaço de programação para artistas mais jovens.” A solução para o problema da cena alternativa do Porto não seria então o Museu de Serralves, mas dependeria da criação de estruturas intermédias que se encarregariam de promover os novos artistas locais.
Apesar desta posição, o próprio João Fernandes reconhecia que Serralves tinha apoiado um conjunto de projectos e artistas locais – o catálogo e exposição do Salão Olímpico, o projecto Antena, entre outros. Estes apoios podiam parecer contraditórios mas, ao serem dados com carácter de excepção, permitiam a Serralves manter um forte ascendente sobre a cena local, sem contudo se comprometer demasiado com ela. Serralves prosseguia assim uma estratégia nacional e internacional ambiciosa, enquanto ia mantendo os “nativos” satisfeitos.
É claro que a condescendência por parte da maior instituição cultural da cidade nem era o problema mais evidente da cena alternativa do Porto. Esse seria, muito provavelmente, a guerra de atrito entre os artistas do Porto e Rui Rio, provocada pelo corte de subsídios e pela privatização da gestão de equipamentos públicos por parte da autarquia. No entanto, apesar de todos estes problemas – e talvez por causa deles – a cena alternativa do Porto foi vingando (as razões para isso são tratadas com mais pormenor aqui e aqui), mas, como seria de esperar, os seus protagonistas não sentem demasiada gratidão em relação ao Governo, à autarquia ou às instituições culturais da Cidade.
Ironicamente, por motivos que ultrapassam a cena alternativa, Serralves iria ter que encontrar rapidamente uma estratégia para lidar com as questões locais. No começo deste ano, a Comissão de Coordenação da Região Norte (CCDR-N) propôs a Serralves a liderança na criação de um cluster de indústrias criativas – segundo o jornal Público, “algo que vai para lá da cultura, tocando a moda, o design, o entretenimento e, no meio disto tudo, o turismo”. Se Serralves queria assumir este desafio, precisava de apresentar uma estratégia para alargar a sua influência às questões locais. À partida, essa estratégia nunca seria convincente se não incluísse uma solução para os problemas da cena independente na própria cidade onde Serralves está sedeada.
A tarefa de encontrar essa estratégia foi atribuída a um consórcio liderado pela Tom Fleming Creative Consultancy, que realizará um estudo cujos resultados serão apresentados até Junho deste ano. Para já, o próprio Fleming esteve no Porto a apresentar os traços gerais do projecto. Tal como foi coberta pelo Público, a apresentação frisou a importância da cultura, em particular a cultura alternativa, na economia. Fleming louvou o lado messy e underground das cidades, assinalando-o como uma mais valia para a valorização económica e cultural urbana, que “não vislumbra […] nas cidades nórdicas, ‘demasiado higiénicas’, com as quais trabalha neste momento, [mas] já percebeu que o Porto tem essa camada underground que urge aproveitar. ‘Os sectores público e privado têm de encontrar um equilíbrio. Temos que permitir que a marginalidade aconteça, que prospere e, por vezes, siga o seu curso. O pior que alguns governos locais ou nacionais podem fazer é tomar o controlo sobre uma realidade que não quer ser propriedade deles.’ […] A receita é clara: ‘Aprender a deixar andar é muito importante. Uma cidade próspera, fervilhante e dinâmica tem de ter espaços marginais, lado a lado com as zonas e estruturas culturais de maior visibilidade.’”
Mas se o discurso parecia estimulante, vendo soluções onde toda a gente via obstáculos, acabava por não resolver o maior problema da cena alternativa: a sua marginalização: se por um lado “permitir que a marginalidade aconteça” dava a entender liberdade para os pequenos criadores, por outro lado, também libertava as grandes instituições da responsabilidade para com eles – se a marginalidade é economicamente produtiva, para quê consertar o que nem sequer está partido?
Porém, do ponto de vista dos pequenos criadores, não serve de muito convencer o Estado, as câmaras, ou as empresas, que a cultura é boa para a economia. Para eles, isso só significa que o grosso das verbas para a cultura continuam a ser atribuídas às grandes instituições, deixando às pequenas estruturas apenas benefícios indirectos ou subsídios muito reduzidos, que as obrigam a financiarem-se do seu próprio bolso.
Mas se o trabalho destes criadores é realmente bom para a economia, porque não dignificá-lo, atribuindo-lhe, não tanto um subsídio, mas algo que possa ser visto um verdadeiro salário, por exemplo? – enquanto um subsídio conota esmola, um salário já dá a entender trabalho honesto. Este modelo seria mais próximo dos países do Norte da Europa, onde a cultura é fortemente subsidiada, mas que Fleming, curiosamente, considera demasiado “higiénicos” talvez porque não apresentam as assimetrias sociais “vantajosas” do Porto. Por outras palavras, nesses países, o Estado, as empresas, e os criadores participam mais equitativamente dos lucros, mas também das responsabilidades da cultura, e o resultado é, como seria de esperar, um sentido maior de cidadania.
Pelo contrário, no modelo actual português, ao qual Fleming se limita a propor um upgrade, o Estado faz o outsourcing da cidadania, colocando essa responsabilidade tradicionalmente pública em mãos privadas, sejam elas empresas, sejam elas os simples cidadãos. Trata-se de um processo que tem efeitos distintos sobre uns e outros. Para as empresas, significa mais área de influência para os seus negócios, para os cidadãos acaba por ser apenas mais um encargo. Mas se cada um tem de manter a esfera pública pelos seus próprios meios, produzindo-a sozinho, ou pagando a terceiros para a produzir, limitando-se o Estado à cobrança de impostos e à fiscalização do processo, é natural que cada vez mais gente sinta que dá muito, em troca de muito pouco. O efeito final deste processo é a erosão lenta da cidadania, e assim se vê que não é apenas pela má gestão e pela corrupção que se perde a confiança nos políticos e nas instituições, mas também por estes se escusarem a cumprir o papel de administrar os interesses públicos, limitando-se a sacudir essa responsabilidade de volta para cima do público.
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Pois… os anti institucionais que hoje são institucionais! Coitadinhos… tenho mesmo pena desta gente… Oh Mário, desculpe lá! Eu até tinha alguma consideração por si… Não que a deixe de ter mas, vamos ser sérios!? Mas que ‘cena alternativa’? O quê? Este paleio vem de onde?
O Mário tem andado a embelezar muito esta ‘cena pseudo underground do porto’… Pressões? Ou mais qualquer coisa? Não! É genuíno..!
Já viu que este grupo oligárquico se queixa dos outros o serem quando (os outros) até não o são tanto assim! Não me diga que reconhece algum tipo poética naquilo que fazem..! Por favor… Julgam que Serralves é algum antro?? O olímpico é outra estória! E já tiveram muita sorte ao publicarem algo com o às custas de Serralves! E já não se trata sequer de dizer que são artistas que começam a desenvolver as suas linguagens, como dizia o João Fernandes… (porque ele até nem é nenhum visionário! Crítica mesmo não se faz… faz-se de conta!) essas linguagens nem existem! É como os eruditos! Descobrem uma coisa e depois esgota-se essa coisa só porque é ‘alta cena’! E já têm idade e até estatuto(!), institucional (por sinal…!) para saberem ocupar o o seu lugarejo em vez de andarem aqui com falsos ‘pudismos’!
Pronto… foi o meu desabafo:D! Um abraço a todos! Portugal ainda é nosso!
[…] com outros. Um que tratava das características formais destas duas gerações de designers; este, este e este, que tratavam das condições económicas da cena independente do Porto e de como afectavam […]
[…] me entusiasmou. Se os cortes afligem é porque, tal como já tinha escrito há uns tempos (aqui e aqui), o estado prefere dar dinheiro a grandes instituições do que a artistas independentes. As […]
[…] por funcionar bastante bem apesar dessa marginalidade – ou mesmo por causa dela, como sugerem alguns. Com pouco dinheiro e ainda menos obrigações por parte do estado ou de privados consegue-se […]
[…] as de pequena escala, foram das primeiras coisas a serem abandonadas pela economia. Curiosamente reconhecia-se a utilidade de uma cena artística fértil para economia de uma cidade ou de um país, mas deixou […]
[…] época das vacas um niquinho mais gordas, queixei-me bastante da falta de uma política coerente para as artes locais por parte de Serralves, por […]
[…] em que escrevo para aqui. Podem encontrar alguns exemplos do que penso sobre o assunto aqui, aqui e aqui, quase tudo pré-crise. Agora, esta reflexão só se tornou mais urgente. E não basta interrogar o […]
[…] sempre quem defenda que as artes devem ser marginais. Pessoalmente discordo. Acredito que, nos tempos que correm, devem ser transgressivas mas o menos […]
[…] Porto, há uns anos discutiram-se questões semelhantes em relação a Serralves. Na altura (como agora), defendi que seria preferível dar apoio a […]
[…] Foi possível ver as mesmas dinâmicas durante o Caso Axa, como em outras ocasiões antes dele (as discussões de Serralves, por […]
[…] e vice-versa. Só aqui no blog se cobriram uns tantos abalos da cena: as discussões em torno da cena alternativa do Porto há mais de meia dúzia de anos, o caso Axa, a turistificação do Porto e a sua relação […]
[…] sete anos participei numas discussões ao vivo e na net sobre a cena alternativa do Porto, que na altura estava prestes a desfazer-se em […]
[…] e vice-versa. Só aqui no blog se cobriram uns tantos abalos da cena: as discussões em torno da cena alternativa do Porto há mais de meia dúzia de anos, o caso Axa, a turistificação do Porto e a sua relação […]
“um projecto como o Museu de Serralves afirma-se pela sua selectividade e essa selectividade é muitas vezes incompatível com um espaço de experimentação para um artista que está a começar a desenvolver as suas linguagens”
paradoxal o que João Fernandes afirmou, pois uma característica geral da arte contemporânea, e que Serralves se congratula a expor, é exactamente o constante sentido de trabalho experimental e de laboratório.
Mas ao que parece, o artista novo “que está começar” é demasiado experimental.
Já o artista velho “que está a acabar” é suficientemente experimental.
Portanto, segundo João Fernandes, o experimentalismo não é uma atitude, mas um adorno quantitativo que se relaciona com a idade de quem o usa.
[valha-me-deus]