
Deixo aqui alguns dos primeiros parágrafos da introdução de um livro de 1966 recolhendo os discursos onde se debateu a liberdade de imprensa no Parlamento Português de 1821 e que levariam ao levantamento da censura prévia no ano seguinte, interrompendo umas tantas centenas de anos de tradição, primeiro Inquisitorial e finalmente Pombalina:
“As nações onde se fala de passado, e para cujo povo esse passado representa um pesadelo trágico e uma fatal condenação de inércia, são as que menos o possuem. Quando nelas é preciso impor uma decisão, uma aventura, uma política que não têm argumentos que a justifiquem (as razões das classes dirigentes são – devemos sabê-lo – inconfessáveis e confidenciais), ou o maquinismo repressivo que as mantenha, é ao passado que se recorre. Monta-se então uma romaria, sem esforço grotesca, grotesca até aos pêsames festivos, sentimentalmente, e nas frases esféricas de patriotismo mortuário. Os ideólogos agiotas, para quem a História é apenas um capital com dividendos tentadores, uma transacção de banco com muitas filiais desinteressadamente ao serviço do público, os agiotas, lembro, abrem os túmulos dos heróis, inventam com as ossadas os fantasmas que mais os favorecem (ajudando assim a desenvolver o industrialismo) e obrigam-nos a declamar as suas próprias ideias (deles, agiotas), cônscios, no fundo, de que as suas próprias ideias decentemente não podem ser proferidas por bocas de vivos.
[…] Os ideólogos agiotas, longínquos de toda a decência, nem se incomodam com o facto de certos grandes homens (alguns que não se podem esquecer por causa das estátuas e do turismo), cujos centenários fogueteiam no já mencionado programa de romarias (centenários de morte ou de nascimentos a muito confortável distância da morte), haverem sido (os grandes homens) perseguidos, vexados, desprezados, assassinados pelos ideólogos contemporâneos, pela polícia contemporânea, pela censura contemporânea, pelos cadafalsos contemporâneos – pessoas e instituições que eles (os agiotas) reinvindicam pontualmente, em nome daquela continuidade a que acima referi, e que constituem, afinal, a sua única ambição de continuidade.
Decerto que, depois de um século, as perseguições e tormentos infligidos aos homens são transfiguráveis (embora a curto prazo) em moralidade para se provar como os perseguidos de hoje podem ser material resistente para novos tormentos e perseguições, ou então em expressão estética, em tema de arte […]”
(A capa é de João da Câmara Leme)
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