Para a direita, tornou-se habitual comparar as dívidas de um país com as de uma família, enquanto para a esquerda já é rotineiro mostrar que a comparação é descabida. É uma diferença de opiniões central e talvez irredutível.
Enquanto uns acreditam que não há (ou não deveria haver) Estado, apenas a soma de famílias e empresas, os outros acreditam que o Estado não só é mais do que a soma das partes como assegura funções que nenhuma família ou empresa conseguiria assegurar.
Porém, ao reflectir sobre a dívida pública portuguesa se calhar até é útil pensar nela como a de uma família para com o seu banco. Não uma família actual, mas uma daquelas famílias esforçadas dos anos 60 e 70, que levavam as suas hipotecas mais do que a sério, como um fardo moral, quase uma sentença judicial.
Pouco antes da crise, eram comuns os anúncios a promover a facilidade do crédito. O mais memorável era aquele que especulava que alguém tinha comprado de repente uma casa invejável porque teria pais ricos, ganho a lotaria, ou ido a certo banco. Dava a entender que um empréstimo bancário era mais fácil do que simplesmente ter sorte. E de facto, na altura, não era muito difícil obter um empréstimo.
Nos velhos tempos, pelo contrário, uma família precisava de demonstrar longamente ao seu banco que emprestar-lhe dinheiro era um investimento seguro. O banco analisava as finanças da família e o negócio onde ela pretendia investir esse dinheiro. Um empréstimo era ele mesmo um investimento por parte do banco.
Essa ideia do empréstimo como investimento é bem visível na crise actual, que não se desencadeou com um aumento da despesa pública, mas com um aumento dos juros. Ou seja, a dívida não se tornou incomportável porque se começou a pedir mais dinheiro mas porque os juros a que esse dinheiro era emprestado aumentaram, reflectindo a ideia que países como Portugal não eram um bom investimento e que portanto haveria a probabilidade de não pagarem a sua dívida.
Respondeu-se a isso tentando recuperar a confiança dos investidores através de políticas de austeridade, que implicavam cortes na despesa de modo a atingir o equilíbrio das contas públicas. Ou seja, procurou contrariar-se a ideia que era perigoso investir aqui investindo nós mesmos o menos possível e abandonando rapidamente os investimentos que já se tinha feito, desde infra-estruturas até formação até à simples contratação.
Voltando à ideia do país como economia doméstica, foi como se, ao aumentarem os juros de uma hipoteca, a família quisesse demonstrar aos credores a sua credibilidade tirando as crianças da escola pública, contratando uma empregada doméstica porque, assegurando ela mesma a lida da casa, estava a impedir a criação de emprego privado. Para arranjar dinheiro para isto tudo, deixou de pagar a conta da luz e da água, lavando a louça e tomando banho em casa de um vizinho que cobra uma taxazita cada vez maior pelo favor. E é claro, a família também pôs quartos, cozinha e sala a alugar, mas quem, no seu perfeito juízo, iria viver para uma casa assim? E qual seria o banco que emprestaria dinheiro a esta gente sem cobrar juros cada vez mais elevados?
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Bom dia.
Creio que não basta colocar as coisas nestes termos:
“[…] a dívida não se tornou incomportável porque se começou a pedir mais dinheiro mas porque os juros a que esse dinheiro era emprestado aumentaram […]”.
A dívida também se tornou incomportável porque o estado começou de facto a pedir mais dinheiro (nos últimos anos a dívida cresceu acima dos 10%) e apenas parte desse dinheiro foi utilizado para fazer face ao aumento dos juros em ocasiões de refinanciamento. A maior parte foi desperdiçada em negócios pouco claros.
http://www.pordata.pt/Portugal/Estado+stock+da+divida+directa-988
A crise aqui em Portugal teve a ver muito directamente com o aumento dos juros, que diariamente eram publicados nos jornais, televisão, etc. Foi isso que acabou por tornar necessário o pedido de ajuda externo. No seu conjunto, não é possível explicar a crise de alguns países europeus apenas pelo excesso de dívida: alguns tinham (Grécia) outros não (Espanha); outros tinham mas tinham também uma economia forte (Itália). Aquilo que todos têm em comum é o aumento dos juros, devido a falta de confiança no investimento. Por outro lado, e como lembrava o Fmi na semana passada, os países que se têm safado melhor são os que aumentaram a sua despesa pública, aumentando a sua dívida.
(E, de resto, a ideia que a confiança dos investidores se perde desperdiçando dinheiro em negócios pouco claros é perfeitamente aplicável à própria ideia de austeridade, aumenta-se o desemprego, a instabilidade social, corta-se na saúde e no ensino, privatiza-se serviços essenciais atribuindo a sua direcção a amigos, e estranhamente a economia melhora porque vão achar que somos um país óptimo para investir.)
Sim, claro. Quanto ao resto estamos totalmente de acordo, nomeadamente, quanto aos efeitos das sucessivas medidas de austeridade e quanto à “fragmentação” do Estado.
Eu só não concordo é com a ideia de que o problema base se centra exclusivamente na subida dos juros. Claro que devíamos estar a contrair dívida para contrariar um ambiente recessivo generalizado. Mas também devíamos, enquanto cidadãos, estara zelar para que esses fundos fossem correctamente aplicados.