Se não fosse pela dica do Rui Silva (o das capas da Orfeu Negro) nunca teríamos encontrado os Gelados Nicolau, perdidos como estávamos nas ruelazinhas apertadas de Mértola, tão íngremes que nos puseram os pneus a cheirar a queimado. A fabriqueta ficava mesmo no centro, ao fundo de umas escadinhas estreitas, debaixo de uma videira muito verde, com serras a verem-se ao fundo.
Fomos atendidos pelo próprio Sr. Nicolau que, depois de alguma conversa, ainda nos ofereceu umas embalagens (feitas em Lisboa há cinquenta anos, esclareceu-nos, e em tanta quantidade que não está a contar precisar de mais).
Quanto ao sabor, só posso assegurar que o nome “Super Bom” não tem um restinho que seja de ironia. Também aconselho a sanduíche de baunilha que vem embrulhadinha em papel branco colado com fita cola.
Comêmo-los o mais devagar possível num miradouro sobre o rio Guadiana, paredes-meias das escadinhas do Sr. Nicolau. Há poucas coisas tão milagrosas como saborear um gelado a meio do Verão, um privilégio reservado a elites e reis, feito de gelo guardado em caves ou trazido em palha dos cumes das montanhas, tornado mais acessível e burguês pela indústria – mas não menos milagroso: em Lisboa, ainda se faz fila à frente de algumas gelatarias com a mesma expectativa e burburinho com que se aguardava uma das primeiras sessões de cinema* ou a demonstração de um protótipo de máquina a vapor.
*Comer gelados é uma espécie de cinefilia, como bem o sabia João César Monteiro ou, antes dele, Victor Palla.
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