Talvez pareça irónico que, nem uma semana depois da manifestação de 15 de Setembro, o país se dedique agora em massa à Casa dos Segredos. Déficit de atenção, dirão. Falta de prioridades. Mas não há ironia nenhuma por aqui, antes pelo contrário.
Ainda me lembro dos velhos tempos, quando os concursos eram um longo percurso entre a parte onde se ganhava uma torradeira ou uma garrafa de sumol e o prémio de sonho, ao fim da noite, em geral um *magnífico* automóvel.
Agora, duram meio ano e o prémio final, depois de um monte de provas, humilhações e amputações mais ou menos voluntárias de privacidade, é a *magnífica* possibilidade de ter um emprego. Eeeeeeeeeh!!! É esse o modelo do Ídolos ou do Big Brother, mas é particularmente óbvio em coisas como as diferentes versões de The Aprentice (que mais valia chamarem-se O Estagiário, na Empresa, na Cozinha, na Galeria de Arte, no Desporto, no Ginásio, etc.).
As massas sonham, depois do jantar, com uma vida exactamente igual à delas, com a diferença que pode dar certo – que não há outro estágio a seguir a este. E depois outro.
São espectáculos que celebram a iniciativa, a competição e uma capacidade épica para a humilhação pública e social – no fundo, as mesmas qualidades que se pede a um operador de call center.
Não espanta que tenham aparecido no design artigos a defenderem modelos de crítica semelhantes ao American Idol (penso que ainda chegou a aparecer um num dos últimos números da Emigre); que se tenha usado o modelo em algumas conferências de design, onde alunos apresentavam o seu trabalho perante um júri tão arrogante e cruel como o do Ídolos. Afinal, mais do que os candidatos, a estrela, aquilo que fica, é a pessoa que decide se o estagiário fica ou vai à sua vida. Esse júri, que não é certamente um crítico mas tão somente um patrão – ou um daqueles gestores cuja especialidade é “aparar” empresas.
No fundo um modelo de sonho da sociedade em que vivemos, e que lhe serve por sua vez de modelo, com muitas empresas a usarem o modelo do concurso para recrutarem estagiários.
Para perceber o contraste da nossa sociedade com a dos anos oitenta e noventa, basta ver os vestígios que ainda sobram dos concursos clássicos – o Preço Certo, por exemplo – exilados para os piores horários e convertidos numa espécie de Feira do Fumeiro cruzada com Baile dos Bombeiros.
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[…] uma sociedade de competição empresarial até nas relações individuais, o jogo torna-se total: concursos de televisão modelados em entrevistas de emprego que por sua vez são modeladas em concurs…. E claro que já não há separação nenhuma entre arte, vida, emprego, […]