Às vezes, no meio da treta nasce uma flor.
Quando o Governo começou a pôr em prática a sua Austeridade, aumentando impostos, eliminando directa ou indirectamente postos de trabalho, muita gente protestou, mobilizando-se em manifestações bem recheadas, por vezes tensas, com jornalistas espancados e manifestantes presos.
Foi-se percebendo que interessava ao Governo passar a imagem lá para fora de uma população que, com uma ou outra excepção, não gostava dos sacrifícios mas, não lhes vendo alternativa, os acatava. Amarfanhou-se a indignação com o conformismo e o medo, e apresentou-se o resultado como resignação: os portugueses tinham tomado a decisão de acatar o remédio azedo que lhes era imposto.
Era uma treta, claro; uma construção do marketing político. Se habitualmente se procura construir a imagem de um candidato, neste caso tratava-se de reconstruir a imagem de um povo.
Nada de novo, até aqui. Ao longo das duas últimas décadas, por exemplo, insistiu-se na imagem de uma população deslumbrada, irresponsável, vivendo acima dos seus meios, procurando uma segurança cómoda através do endividamento, seu e privado (no caso de querer uma casita), nosso e público (se trabalhava para o Estado).
Era uma generalização tosca, um preconceito, que servia para deslocar a culpa dos grandes interesses para o cidadão comum.
Em Portugal, a relação dos governante com os governados oscila quase sempre entre a condescendência e o desprezo puro e simples, com um momento central de indiferença. Há sempre uma distância, um preconceito, pontuados por doses alternadas e vigorosas de cenoura e de varapau.
Neste caso, a cenoura começou por ser a Europa, o Euro, o Investimento, a Inovação, o Ensino Superior Público. O varapau começou por ser a Culpa. Mais tarde, a Austeridade. E, finalmente, os Sacrifícios. Tudo pontuado com doses cada vez mais económicas de cenoura. Nada de substancial, apenas elogios vagos. Que os portugueses tinham aceite o castigo; que o acatavam com resignação; que estavam a cumprir.
E foi nesta admissão simples, insincera, governamental, de que os portugueses podiam cumprir alguma coisa, que nasceu a tal flor. Nunca nenhum governo tinha conseguido convencer os portugueses que podiam ser responsáveis e cumpridores. Neste caso, a treta não se dirigia aos portugueses, mas ao resto do mundo, porém o efeito secundário foi um movimento subtil da nossa identidade nacional.
Além de unir boa parte dos portugueses contra as suas acções, este governo deu-lhes sem querer, desastradamente, uma coisa nova, um dom (que eu não me lembro de ter visto por aqui antes): uma superioridade moral legítima, pública.
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