Mais do que tudo o que este governo fez até agora, é a “refundação” que me mete mais medo. Isolada é só mais um rebranding na longa linha de rebrandings com os quais o neoliberalismo foi sendo revestido em Portugal, camuflando sempre a sua agenda base – menos Estado, mais mercado. Mas, pelo seu efeito cumulativo, obsessivo, imparável arrisca-se a ser a gota que faz transbordar o copo. Não: arrisca-se a ser a gota que esvazia finalmente o copo.
Desde antes da crise financeira de 2008 que o neoliberalismo tem provocado boa parte dos problemas que afirma poder resolver quando finalmente lhe derem rédea solta. As PPPs, por exemplo, já eram o neoliberalismo a funcionar. Para os cépticos eram um copo meio vazio. Para os neoliberais, o copo só estava meio vazio porque ninguém os deixava acabarem de o esvaziar. E quando estiver vazio, a iniciativa privada encarregar-se-á de o encher (não acreditam?).
Desde que este Governo entrou em funções que aplica a fórmula: os problemas que provocaram aplicando parcialmente as suas convicções, só podem ser resolvidos aplicando-as ainda mais. Assim, para resolver uma crise provocada pela desregulação (menos Estado, mais mercado) inventou-se a austeridade, que caía principalmente sobre os funcionários públicos (menos Estado, mais mercado), e depois foi alargada a toda a gente com brutais aumentos de impostos, que já não servem para pagar serviços de Estado mas juros da dívida, no que é efectivamente uma privatização dos impostos (menos Estado, mais mercado). Finalmente, propõe-se o corte dos serviços públicos que o Estado ainda assegura para que estes novos impostos e serviços privados possam ser pagos com todo o à vontade (menos Estado, mais mercado).
Na primeira cena de um dos livros de Lewis Carroll, uma manifestação “encomendada” exigia a dada altura menos pão e mais impostos. Na Inglaterra vitoriana seria nonsense, sem grandes dúvidas. Hoje em dia, seria o mais ortodoxo neoliberalismo.
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