Nos últimos anos, sobretudo depois da crise, tenta-se repolitizar a arte – um esforço falhado à partida. Porquê falhado? Porque se trata de usar os processos e as instituições habituais da arte para falar sobre política. E a arte habitualmente não fala. Ou pelo menos tenta não falar obviamente.
Para trazer um objecto político, um cartaz do 25 de Abril por exemplo, para um museu ou uma galeria o artista tem que de, algum modo, o tornar menos óbvio, mais ambíguo, porque uma das condições da arte contemporânea é o pudor de assumir uma posição nos próprios objectos.
A posição fica reservada para outras situações, para o texto da folha de sala ou para o catálogo, para o discurso que acompanha a visita guiada, para o discurso do crítico ou do comissário. É uma arte que assume também como condição uma certa especialização entre falar, escrever, mostrar, etc.
Às vezes diz-se até que o artista e os seus objectos não tomam uma posição para que o público possa tomá-la por si mesmo – uma falsa modéstia, e inútil, ainda por cima, porque não seria uma posição mais óbvia ou forte que obrigaria o público a concordar ou discordar. Aliás, é mais fácil tomar uma posição perante uma posição evidente do que perante uma posição ambígua.
O silêncio do artista em relação aos objectos que produz limita-se assim a resguardar esse mesmo silêncio, dando a entender que é uma forma de intervenção.
E é-o, mas apenas na medida em que monumentaliza o próprio silêncio.
Serve sobretudo para salvaguardar que uma obra é reinterpretável – é através da reinterpretação que um objecto pode ser apropriado por ideologias distintas, que se torna intemporal.[1] É um silêncio de conveniência, o equivalente metodológico de um verniz, que procura garantir a longevidade da obra e do artista.
Serve também para sublinhar que o acesso à obra acaba por ser feito apenas mediante o acesso ao artista, ao crítico, ao comissário ou ao historiador. O espectador pode sempre tentar, mas a sua interpretação terá sempre uma legitimidade relativa em relação a estas outras interpretações que, pelo seu silêncio, recusam descer ao seu nível, abandonando-o no momento em que dizem libertá-lo.
Em alguns casos, o silêncio não é próprio, mas imposto a outros. Apagam-se as letras de cartazes políticos, reduzindo-os a formas abstractas e silenciosas, e lamenta-se no mesmo momento como esses cartazes e essas ideologias já não conseguem ser eficazes. Mostram-se fotogramas ampliados de massacres ilustrando que, no fim de contas, tudo pode ser descontextualizado. Reencenam-se processos de censura, de crime, como uma denúncia, mas cai-se demasiadas vezes num fascínio estético pela violência denunciada.
No limite, trata-se de procurar o que há de belo na política, mas usando os critérios habituais da arte, que consistem numa oposição entre estética e política, quanto mais de uma menos da outra e vice-versa. É o mesmo que dizer que a Arte como deve ser, com A grande, é, em si mesma, o oposto de política – só é política na medida em que despolitizar é um processo político.
É claro que é possível uma arte política. É até fácil fazê-la e encontrá-la. É comum. Mas será sempre falhada pelos critérios com que é avaliada a Arte com A grande, tomando uma posição por exemplo.
[1] Ver Against Interpretation, de Susan Sontag, por exemplo.
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[…] de Joana Vasconcelos. Pelos vistos também pertence a um género de “arte política” muito em voga, que consiste em agarrar na ruína de qualquer coisa política, social ou popular, transformando-a […]
Gostei do texto. Resume bem a atitude do artista contemporâneo perante a Política… ou diria mais, a sua ausência.
Por outro lado fez-me focar o pensamento no restante aspecto “Taylorístico” existente no Sistema da Arte Contemporânea.
Compreendo que exista essa necessidade do artista, em se proteger, retirando-se para o lado sombrio da “fábrica de Arte” e de achar que: o marketing do curador; a capacidade da força de venda do seu trabalho, o galerista, ou outro “agente da cultura” promovam e falem do seu trabalho; que o contextualize…
Ao mesmo tempo é estranho assistir a este cenário, sabendo que isso é a base ideológica do que tem separado o patronato do proletariado – falando numa linguagem “acassetada”.
Será que o preço do silêncio dos Artistas não acabará por ser antes uma arma, ou num termo menos belicista, um instrumento do Poder em vigor?
Se um artista não está disposto a assumir uma posição frontal e política, talvez também não deva beber desse tema para justificar o seu papel socialmente, pois ao fazer isso, corre o risco de tornar-se numa “praia”, onde a “onda” correspondente à força do seu tema, acaba por ir morrer – e isto sob os olhar voyeurista do Poder.