De volta a Brooklyn depois de um fim de semana em New Hampshire, não muito longe do Canada numa região de lagos gelados pelo inverno. Uma das terras próximas aparece mencionada no Walden e pelo caminho, embora bastante longe e sem abrandar, passámos por sinais indicando a localização do pequeno lago que dá o nome ao livro. Caminhámos pelo meio da neve com versões actuais das “raquetes” que se usavam para o efeito nos velhos tempos e que ainda aparecem cruzadas a decorar portas de celeiro. Havia umas no sítio onde fomos comprar gelados artesanais numa estrada terciária de lama no meio da neve. Entrava-se, escolhiam-se os sabores e deixava-se o pagamento numa gaveta, recolhendo o troco de uma jarra de vidro. Avisaram-nos que nunca havia ninguém, apenas uma câmara moderna de vigilância a piscar num canto no meio das traquitanas, reservatórios antigos, dos frigoríficos decorados toscamente com padróes a lembrar os de uma vaca.
Tanto como em Brooklyn, sentia-se ali a experiência americana, a natureza extrema e os grandes céus, sim, mas também a ideia de pequenos negócios tornados épicos por se aninharem assim, convictos, no limiar do falhanço. O ex-libris da zona eram os cães de trenós, trazidos por um antepassado do nosso anfitrião, que chegaria a escrever dois livros de aventuras contados do ponto de vista dos animais.
Não era um lugar afastado do mundo. Num dos quartos da antiga pensão, conhecido por “war room” um mapa mundi com a Rússia ao centro ocupava a quase totalidade de uma das paredes inclinadas das águas-furtadas. Pertenciam a um antigo oficial da marinha, presente no Dia D, cujo apelido tinha batizado depois um vaso de guerra, e cujos livros sobre o Médio Oriente enchiam ainda as estantes das salas. A senhora que nos atendeu num diner na cidade próxima e que limpava a casa de onde tinhamos saído a caminho de Nova Iorque também nos disse que o namorado da filha era português, “da região montanhosa para o interior do Porto.”
De volta, a Brooklyn e a Nova Iorque, a experiênca era de novo mais óbvia e mais extrema, de construção mas também de degradação permanente, por vezes no mesmo acto, na gentrificação que o nosso anfitirião nos ia apontando a cada passo. Também aqui, entre os artistas, e os polícias, e os correctores, se vivia sempre e orgulhosamente num limiar qualquer do falhanço – e mesmo que se aterre do lado errado, ainda assim será melhor que conseguir em outro sítio qualquer.
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