Faz uns dez anos que deixei de fazer banda desenhada. Na altura estava a começar a odiar cada página, cada quadradinho. Era um esforço imenso que não compensava. Quando ainda me perguntam porque não volto a desenhar, eu não digo o que realmente penso. Demorei dois anos a aprender a nadar com alguma fluência. Durante esse tempo descobri que percorrer uma piscina de uma ponta à outra é aprender a gerir uma lenta asfixia. Por melhor que se nade, só se aprende a fazer isso cada vez melhor. É sempre desconfortável. Nadar melhor é estar disposto a enfrentar isso. Na banda desenhada deixei de o conseguir fazer.
Tenho um fascínio por criadores que começaram a não suportar a sua própria obra. João Abel Manta, que abandonou os cartoon para se dedicar com menos sucesso à pintura, por exemplo. Rimbaud. Nem se trata de a odiarem, de asfixiarem nela, mas de simplesmente um dia darem um passo ao lado. Sairem.
Por estes dias, gostamos cada vez mais de autores. Ouvimos com atenção o que nos dizem mesmo que seja ofensivo, inofensivo, trivial dos dois lados, inútil. A nossa arquitectura, design, cinema, arte, prefere os autores, a figura, o herói à própria obra. Acreditamos que, por se falar com o autor, percebemos finalmente a coisa. Sobretudo quando ele se recusa ou é mal disposto, maldito. E assim acreditamos que, por jantar com ele, por beber um copo, por ver a sua intimidade, o percebemos melhor.
Mas eu gosto desses autores que não suportam a própria obra porque nos ajudam a perceber que por vezes a obra não é feita por quem a abandona mas por quem a recebe. Às vezes, a obra ultrapassa o seu criador e torna-se uma coisa do público. Toda a obra é como um filme de culto, daqueles tão maus que ganham um público, apesar do seu autor, apesar das suas intenções ou falta delas.
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