
No Público, lado a lado, duas notícias sobre comboios na Régua.
Numa, dá-se conta da vandalização do Comboio Histórico, provavelmente por taggers como tantos outros que andam por aí a enfiar a assinatura deles em tudo quanto é lado. Ainda há uns dias, rabiscaram por cima de um mural do Nuno Saraiva na Mouraria. Criticar este género de acções é complicado porque leva quase inevitavelmente a acusações de censura. Defende-se que o grafitti é uma espécie de liberdade de expressão e portanto um direito. Contudo, ao contrário de um discurso escrito ou falado, a própria natureza do grafitti implica que se sobrepõe a outros discursos. Rasura-as. Podem ser outros desenhos, como os de Nuno Saraiva, ou pode ser por exemplo um elemento arquitectónico. No Porto, a maioria da arquitectura Brutalista, feita em betão sem revestimento, está neste momento pintada de cinzento. Tendo em conta que a intenção dos Brutalistas era enfatizar a natureza dos materiais, pode-se dizer que o grafitti eliminou a arquitectura Brutalista. Onde ficou a liberdade de expressão de quem fez ou de quem gosta deste tipo de arquitectura?
A liberdade de expressão é um direito mas também uma responsabilidade, um compromisso de garantir que aquilo que dizemos em público não limita ou apaga a liberdade de expressão dos outros. Muitos grafitters têm essa ética cívica, que leva a que só actuem com autorização dos donos, sobre edifícios devolutos, sem estragar outros grafittis. Mas a grande maioria limita-se simplesmente a deixar uma marca desleixada e rápida, uma rubrica a tomar posse de um lugar, quanto mais difícil o acesso melhor – veja-se o caso da grafitter americana que vandalizou irremediavelmente Parques Naturais com pinturas só para poder pôr selfies ao lado da sua obra no instagram (foi apanhada por isso).
O grafitti já tem muito pouco de resistência ou de contracultura. Se tem um mínimo de qualidade já é encorajado por Câmaras Municipais e Governos. Ainda é um instrumento de luta poderoso mas na maioria dos casos limita-se a uma agressão fútil, impulsiva e arbitrária. Tornou-se talvez a marca mais óbvia da degradação dos valores públicos em nome de uma expressão individual absoluta, que não admite limites. Aliás, a discussão sobre grafitti reduz-se em grande medida ao combate entre o direito de propriedade de quem tem a parede e o direito de expressão de quem assina – uma luta entre duas formas de propriedade privada, sem qualquer tipo de consideração para com o comum, o público, etc.
Curiosamente, a segunda notícia sobre Comboios na Régua tem a ver com património público histórico, um certo tipo de linha do qual só sobram poucos vestígios em Portugal, que foi eliminado pela Infraestruturas de Portugal (antiga Refer), sem se dar ao trabalho de consultar outras entidades ou sem dar ouvidos ao interesse do público, a atitude comum por estas bandas. E não deixa de ser irónico que enquanto se lamente a vandalização do Comboio Histórico se destrua levianamente património.
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