Nos dias seguintes à eleição de Donald trump, fui apanhando aqui e ali os inevitáveis apelos a que os designers se mobilizassem. Acontece sempre que há uma desgraça. Aconteceu com a invasão do Iraque. Aconteceu com o furacão Katrina. Aconteceu com a crise financeira. Aconteceu com Passos. Já acontecia antes da internet, dos blogs, do facebook ou do twitter mas agora é uma rotina. Há muitas desgraças. Esta eleição, outra delas
O primeiro sinal que me chegou foi um artigo na Wired. Começava por sublinhar como o design tinha contribuído para um momento crucial da história dos direitos cívicos americanos: em 1960 quatro jovens negros sentaram-se durante horas ao balcão de restaurante reservado a brancos, aguentando insultos, ameaças, chamando assim a atenção para a maneira como a população negra era tratada nesse tipo de estabelecimento. Nenhum deles era designer, nem aquilo tinha o que quer que fosse que ver com questões visuais, mas (insistia o artigo) aquele finca pé era “um dos grandes marcos do design do século XX”.
E prosseguia: “O design ponderado, seja ele um logotipo, um objeto ou um protesto bem organizado, sempre teve a capacidade de provocar mudanças políticas. E, no entanto, nos dias que se seguiram à eleição, sentiu-se que o poder do design – pelo menos momentaneamente – diminuiu. O design gráfico não afectou o resultado. A infografia também não. Os algoritmos e o experience design não combateram a câmara de eco da Internet; fortaleceram-na.”
A primeira coisa que me ocorreu foi: “Hã?!” De tal modo eram absurdos o exemplo e o argumento que dele se derivava. Como é possível considerar o protesto daqueles quatro activistas como design gráfico? Ou (já agora) como qualquer tipo de design?
Mesmo considerando que “design” enquanto verbo da língua inglesa também significa projectar ou planear, reclamar este protesto para dentro da área disciplinar do design é problemático ao extremo. É o que se designa por apropriação cultural, quando membros de uma cultura dominante se agarram despreocupadamente a objectos, figuras e marcos de culturas minoritárias, oprimidas, etc. Se foi um marco para o design a manifestação de quatro activistas negros num restaurante, em que afectou isso a presença da comunidade negra dentro do próprio design, ou a presença de design produzido pela comunidade negra nas revistas e na história do design. Em que medida isso revelou alguma coisa sobre o modo como o design se relaciona com essa comunidade. Nos livros de história dominantes do design gráfico, aqueles pelos quais se ensina nas escolas, o design tende a situar-se na Europa e na América do Norte, em países e contextos onde o racismo e a xenofobia estiveram e estão presentes. Como se pode imaginar o design como alheio a isso?
E a apropriação de uma acção que pouco ou nada partilha com o que habitualmente se vê como design soa mal, quando se vê facilmente que o design é uma disciplina muito pouco inclusiva por natureza. Afinal, um dos passatempos favoritos dos designers é declarar que tal ou tal coisa, ou tal ou tal pessoa, às vezes bem presentes na história do design, nas escolas, citados por toda a gente, não deviam fazer parte do design. Não é design, sentencia-se. Ou: tal pessoa não é um designer. Já ouvi defender que não fazia sentido considerar um poster como sendo design. Já ouvi dizer isso da ilustração. Já ouvi dizer isso do Sagmeister.
O design, tal como qualquer outra área disciplinar, é um campo de discussão. E os limites do campo naturalmente discutem-se. Mesmo a própria história está aberta a debate. É comum, por exemplo, debater se as vanguardas fazem parte do design ou se são “só arte”. É costume reclamar-se para o design figuras históricas importantes só porque passaram de raspão por uma tipografia ou por um curso de design – Alan Rickman, o Snape do Harry Potter, estudou design, etc.
Se calhar até é possível que o protesto dos quatro jovens activistas seja mesmo um dos marcos mais importantes do design do século XX. Apesar de não envolver designers, apesar de não ter nada que ver com representação visual do que quer que seja, apesar de não ter acontecido em qualquer tipo de instituição ou organização ligada ao design, apesar de não ter sido empregue qualquer tipo de metodologia identificável como sendo design. Se calhar é possível fazer uma espécie de ready made político e afirmar “Je Suis Design” – embora seja mais rigoroso neste caso dizer que “Ceci est du Design”. Design seria tudo o que um designer quisesse. O design é uma coisa poderosa.
Excepto, claro, quando se trata de lidar com os resultados da eleição de Trump. Nesse caso, se já se sentiu “que o poder do design – pelo menos momentaneamente – diminuiu. O design gráfico não afectou o resultado. A infografia também não. Os algoritmos e o experience design não combateram a câmara de eco da Internet; fortaleceram-na.”
Curioso como o design é tudo, está em todo o lado, mas saiu diminuído por esta eleição. O que retirou esta eleição do domínio do design? Foi porque Trump ganhou? Está-se a sugerir que o design alinhava com os democratas, ou pelo menos que não está do lado da demagogia populista? Ou está-se a sugerir que o design em si mesmo está do lado da apresentação da informação de um modo claro, neutro e verdadeiro? E que, sendo Trump um mercador de treta, está portanto num campo oposto do design?
O texto continua, dizendo que os “designers honestos nunca ofereceram o seu trabalho como uma panaceia mas, como tantas outras pessoas, ponderam que papel podem ter daqui para a frente.” A verdade é que sim, os designers já ofereceram e oferecem o seu trabalho como um remédio mágico, uma panaceia, para tudo e mais alguma coisa. E, quanto à honestidade, lembro-me de há uns anos Michael Bierut ter escrito um texto a defender que a treta é uma qualidade inerente ao bom design – garantia a dado passo que “qualquer apresentação de um projecto de design é inevitavelmente, pelo menos em parte um exercício de bullshit.” Para Bierut, em cada projecto de design há decisões funcionais e decisões intuitivas. Se as primeiras são “concretas e mensuráveis”, as segundas, as intuitivas, derivam do gosto, são difíceis de justificar:
“Assim, para dentro deste vácuo jorra a treta: teorias sobre as qualidades simbólicas das cores ou fontes; afirmações não demonstráveis sobre a inevitabilidade de certas formas; casamentos forçados mirabolantes de elementos de design a pragmáticos objectivos de negócios.”
E Bierut não vê mal nenhum nisso. Aliás, diz que desde cedo percebeu que tinha um talento para a treta. E conclui com uma história querida sobre o seu antigo patrão Massimo Vignelli a barrar heroicamente de treta um cliente difícil. E não, não é um caso isolado. Fartei-me de ir a conferências ver designers mostrarem os seus trabalhos pela quantidade estúpida de treta que também era mostrada. A figura estereotípica do vendedor de automóveis usados poderia ser facilmente substituída por um designer. Portanto, não, não me venham dizer que o design se situa claramente contra gente como Trump do lado da clareza, da verdade e da transparência. Não é assim tão simples.
Nos depoimentos que se seguem ao longo do texto da Wired fica a ideia que o papel é sobretudo o de representar o optimismo. Num artigo de opinião, citado no texto, Michael Bierut e Jessica helfand apelam ao design como modo de lidar com a desilusão – com o eleitorado, com as falsas esperanças alimentadas pela imprensa. Contra isto tudo, defendem que o papel dos designers é transmitirem confiança, porque o design é uma actividade “inerentemente optimista”. Os designers “podem não estar na posição para controlar a mudança, mas são os seus mais fervorosos embaixadores”.
E garantem: enquanto a “nação ficou dividida”, os designers “continuam unidos enquanto uma comunidade: uma comunidade de “like-minded peers”. “Like minded” em relação a quê? Ao papel do design? Ao que o design é? Supondo que se calhar até há designers a trabalhar para o campo de Trump, eles não acharão que o resultado desta eleição é um triunfo do design? É bem provável que esses designers até concordem que o papel do design é trazer optimismo na mudança – numa América mais dividida por género e por raça, mais abusiva com mulheres, mais agressiva com judeus, mais dura com imigrantes.
Enfim, banalidades, platitudes e boas intenções.
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