Um detalhe curioso do livro que publiquei agora é que teve a sua origem no meu relatório de nomeação definitiva. Para quem não anda na vida académica, é um documento que se entrega quatro anos e quatro meses depois do doutoramento com o objectivo de convencer a instituição a contratar-nos de vez. Até aí, estamos todos a prazo.
O relatório costuma ser uma lista mais ou menos comentada do que se publicou, conferenciou ou expôs nesse período de tempo. Há quem se limite a entregar meia dúzia de páginas (nada de mal com isso). Eu entusiasmei-me. Passei o Outono de 2015 a escrevê-lo e confesso que me diverti. Foi uma oportunidade para passar em revista o que escrevi em quatro anos e eu próprio fiquei surpreendido. Tinha publicado mais de vinte textos em publicações impressas. No caso deste blog, havia 1671 posts. Muitos eram observações de passagem, mas uma grande percentagem não envergonhava.
Um amigo sugeriu-me que apresentasse uma selecção de textos à Orfeu. Quase de imediato, decidi não construir o núcleo do livro a partir do blog. Através do relatório apercebi-me também que havia uma grande quantidade de textos dispersos por publicações variadas. Apesar de produzidos por encomenda, seguiam um conjunto de fios condutores, aquilo a que se poderia chamar as minhas preocupações de investigação. A principal são são talvez as questões de identidade no design. Depois de bastante escrita, revisão, selecção, reescrita, o livro reune doze textos sobre esse tema – identidade do design enquanto disciplina, dos designers, de género, étnica, de classe, geográfica, etc. A maioria veio de outras publicações por vezes muito modificados, dois foram escritos de raiz. Apenas um deles teve a sua origem no blog.
Quanto ao relatório, foi também um ensaio que cumpriu com sucesso a sua função principal – consegui a nomeação definitiva com uma óptima nota. Foi também um documento importante para mim, apesar do seu carácter «burocrático», tanto pela oportunidade de fazer um ponto da situação como pelos caminhos que abriu, um deles levando ao «O Design que o Design Não Vê».
Deixo aqui aqui o começo da sua introdução:
“Combining [an] academic job with freelance activities leads to a life in which the de- tour is the tour, as projects are shaped by whatever possibilities there are to finance them partially. I too have tried to make the most of these conditions, and attempted to develop a practice that is embedded and tactical.”
Sven Lütticken
Neste documento, apresento a investigação e intervenção públicas que produzi nos quatro anos e quatro meses que passaram entre a defesa do meu doutoramento e a en- trega deste relatório, enquadrando-a no seguimento do esquema teórico desenvolvido na minha investigação doutoral. Trata-se de integrar num fio narrativo coerente um conjunto de intervenções muito distintas entre si, tanto na forma como nos temas. Este é, afinal, o problema de tentar combinar o ensino e a investigação académicos com oportunidades de investigação, escrita ou comissariado, quase sempre sujeitas a temas e condições que, mesmo quando são generosas, nunca são exactamente as ide- ais. Usam-se as ocasiões mais díspares para ir construindo, lentamente e em público, uma linha de argumentação que se prolonga através de textos, ensaios, posts, folhas de sala, conferências, livros, cada qual sob temas tão diferentes como a biografia de um designer, o design e influência de um determinado livro, uma conferência cuja única obrigação é durar exactamente seis minutos e quarenta segundos, etc. É uma manta de retalhos – ou como descreve elegantemente Sven Lütticken na citação que serve de epígrafe a este texto, uma vida onde o “detour is the tour”, onde o desvio é a via. Mesmo este relatório é uma oportunidade. Uso-o como ocasião para convocar um conjunto de peças dispersas e heterogéneas para, espero, revelar que fazem parte de um todo coerente.
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