A melhor peça de crítica de arte que li em 2018 escreveu-a Zadie Smith. Apareceu-me na sua última colectânea de ensaios, Feel Free. Eu já suspeitava que dali, daquele livro, ia sair coisa boa. Reservei-o na loja apple muito antes de sair e vou-o lendo aos pedacinhos. E um dos melhores pedacinhos é «Killing Orson Welles at Midnight», que não sei se é crítica de arte, não sei se é crítica de cinema, só sei que é muito bom.
Eu sou suspeito, sou fã dos ensaios de Smith, pelo menos desde da sua anterior antologia, que me cativou logo desde o título, tão bom, tão feito à medida do que são os melhores entre os melhores ensaios, «Changing My Mind», que se poderia traduzir por mudar de ideias. Os melhores ensaístas não mudam as ideias de quem os lê, mudam publicamente as suas próprias. Lê-los é como ver um nadador de alta competição a fazer alongamentos, a aquecer, a tentar uma coisa nova num treino.
«Killing Orson Welles at Midnight» é sobre a obra The Clock, de Christian Marclay, um filme de vinte e quatro horas onde cada minuto é construído a partir de referências a esse mesmo minuto em todo o tipo de filmes. Smith dedica-lhe um exercício cada vez mais raro nos tempo que correm que é o de simplesmente ser uma espectadora. É um exercício feito na primeira pessoa, como só poderia ser. Que envolve encaixar o filme dentro da sua própria vida, dos seus horários, das idas à creche – aqui em Portugal, onde a pior crítica mascara a sua mediocridade e mediania com tiques neutros, académicos e funcionários, há quem ache ensaios deste tipo como um exercício de vaidade.
Ser espectador a sério é uma experiência que se faz com o corpo todo, com a vida toda. Era algo que sabiam críticos e ensaístas seminais como Diderot ou o seu melhor descendente, Baudelaire. Não teriam futuro ou emprego dentro da crítica portuguesa que emperrou com gosto num modo funcionário de viver, numa versão aguada, domesticada, do tipo de escrita que se praticava na October. Se não se usa o estilo, não se é levado a sério.
É um gosto ler este e outros ensaios de Zadie Smith. É como ouvir música nos anos oitenta, quando era preciso esperar que chegasse a Portugal numa longa cadeia de importação, quando desejar boa música ao vivo acontecia num vazio tão grande e escancarado que consumia a própria possibilidade de se fazer música, quando cada músico em Portugal era só um tipo de espectador mais impaciente e performativo.
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