The Ressabiator

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Se não podes pô-los a pensar uma vez, podes pô-los a pensar duas vezes

Espectador de alta competição

A melhor peça de crítica de arte que li em 2018 escreveu-a Zadie Smith. Apareceu-me na sua última colectânea de ensaios, Feel Free. Eu já suspeitava que dali, daquele livro, ia sair coisa boa. Reservei-o na loja apple muito antes de sair e vou-o lendo aos pedacinhos. E um dos melhores pedacinhos é «Killing Orson Welles at Midnight», que não sei se é crítica de arte, não sei se é crítica de cinema, só sei que é muito bom.

Eu sou suspeito, sou fã dos ensaios de Smith, pelo menos desde da sua anterior antologia, que me cativou logo desde o título, tão bom, tão feito à medida do que são os melhores entre os melhores ensaios, «Changing My Mind», que se poderia traduzir por mudar de ideias. Os melhores ensaístas não mudam as ideias de quem os lê, mudam publicamente as suas próprias. Lê-los é como ver um nadador de alta competição a fazer alongamentos, a aquecer, a tentar uma coisa nova num treino.

«Killing Orson Welles at Midnight» é sobre a obra The Clock, de Christian Marclay, um filme de vinte e quatro horas onde cada minuto é construído a partir de referências a esse mesmo minuto em todo o tipo de filmes. Smith dedica-lhe um exercício cada vez mais raro nos tempo que correm que é o de simplesmente ser uma espectadora. É um exercício feito na primeira pessoa, como só poderia ser. Que envolve encaixar o filme dentro da sua própria vida, dos seus horários, das idas à creche – aqui em Portugal, onde a pior crítica mascara a sua mediocridade e mediania com tiques neutros, académicos e funcionários, há quem ache ensaios deste tipo como um exercício de vaidade.

Ser espectador a sério é uma experiência que se faz com o corpo todo, com a vida toda. Era algo que sabiam críticos e ensaístas seminais como Diderot ou o seu melhor descendente, Baudelaire. Não teriam futuro ou emprego dentro da crítica portuguesa que emperrou com gosto num modo funcionário de viver, numa versão aguada, domesticada, do tipo de escrita que se praticava na October. Se não se usa o estilo, não se é levado a sério.
É um gosto ler este e outros ensaios de Zadie Smith. É como ouvir música nos anos oitenta, quando era preciso esperar que chegasse a Portugal numa longa cadeia de importação, quando desejar boa música ao vivo acontecia num vazio tão grande e escancarado que consumia a própria possibilidade de se fazer música, quando cada músico em Portugal era só um tipo de espectador mais impaciente e performativo.

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Brexit e Trump, Dois Pesos e Duas Medidas

Quando foi do referendo do Brexit, que aconteceu logo a seguir à crise europeia, confesso que não tinha (e ainda não tenho) grande fé na Europa. Num referendo semelhante, eu só votaria para ficar na Europa por medo do que nos poderia acontecer na economia, porque estar na Europa ainda era, e é, algo que mete medo. Agora, votaria com mais certeza para ficar mas continuaria a ser por medo. Já não da economia mas de outros sustos.

Daí que compreenda o que levou muita gente de esquerda a não gostar da Europa, inclusive o Corbyn ou o PCP por aqui. Não acho, como muita gente acha, que o voto no Brexit tenha sido só xenófobo mas houve muito voto anti-europeísta – coisas distintas, que era boa política saber distinguir. O que se percebeu com a discussão em torno do Brexit é que criticar a Europa tornou-se para muita gente de esquerda inaceitável.

Curiosamente, as mesmas pessoas que dizem que votar contra a Europa é xenófobo já dizem que votar em Trump é um voto motivado por questões laborais e ansiedades económicas, e que devíamos esquecer o racismo e a xenofobia (em nome de ganhar eleições). Acho que há muito má consciência, muita hipocrisia e tacticismo de meia-tigela à esquerda.

O meu ponto é que houve um duplo standard na reacção de certa esquerda ao Trump e ao Brexit. As mesmas pessoas que assumiram desde logo e sem mais a xenofobia do voto no Brexit já estavam pouco tempo depois a dizer que se devia perceber «as verdadeiras motivações» de quem votou no Trump.

Ora, vendo friamente, é bastante mais plausível ver motivações complexas num referendo sobre a Europa, que pode realmente ter as tais ansiedades de classe e económicas, do que na eleição de Trump, que vinha com uma agenda explicitamente racista, xenófoba, machista, etc., que tinha um estratega nazi (Bannon), etc.

O referendo sobre a permanência na Europa, por mais que tivesse sido badalado pela ultra-direita inglesa permitia outras motivações. Na altura, houve uma série de depoimentos sobre gente que votou contra a Europa por questões de economia, de emprego. Posições muito próximas das do PCP aqui. Também li gente que votou no Brexit contra as políticas de imigração da Europa, não no sentido de serem abertas mas demasiado restritas.

O que acho curioso foram as maneiras retorcidas como se tentou ver isto como um voto xenófobo – o que não aconteceu com o Trump. Pela minha parte, acho que o trabalhismo de Corbyn esconde muita grunhice mascarada de preocupações económicas e de classe. Há muita luta contra o neoliberalismo que disfarça racismo, homofobia, anti-semitismo, chauvinismo, etc. Basta ver os que criticam o feminismo ou as reinvidicações LGBT apenas porque os vêem como neoliberais – não porque o sejam, mas apenas porque não dão jeito.

Deveria haver mais cuidado em perceber que há causas e motivações complexas, mesmo quando se trata do voto xenófobo. Todo o cuidado que se tem em entrevistar grunhos de bonés vermelhos em diners na rust belt pura e simplesmente não existiu no referendo do Brexit. Houve uma diabolização instantânea de quem votou para sair. Quem quer que exprimisse a menor dúvida em relação à Europa ou ao projecto europeu era logo apelidado de xenófobo, e isso aconteceu aqui mesmo em Portugal.

No dia seguinte ao referendo, houve um colectivo grito de «xenófobos e racistas». Tive discussões gigantescas só por ter chamado a atenção que havia votos minoritários contra a Europa mas cuja motivação era económica, laboral.

Pelo contrário, em relação aos Estados Unidos ainda há uma corrente muito forte, associada ao Bernie Sanders, que acha que não se deve alienar os eleitores chamando-lhes racistas, xenófobos, etc. Encontra-se isso em gente como o Mark Lilla, liberais que denunciam o politicamente correcto, etc. Que criticam as identity politics e as tentam colar a Hillary, que vêem o feminismo e o activismo lgbt como um desvio de atenção do que interessa verdadeiramente que é a luta de classes, a única coisa que unificará a esquerda, blá, blá.

Desconfio que a maneira como essas ideias se engancham aqui em Portugal tem muito que ver com experiências da diáspora em cada um dos países: em Inglaterra, o imigrante português é o tipo estrangeiro do sul da Europa que vem roubar empregos. Ou seja, em Inglaterra o português é alvo da xenofobia. Nos Estados Unidos, a emigração portuguesa teve uma longa luta a distanciar-se de negros e latinos. Tornou-se, para todos os efeitos, branca e portanto, mesmo quando vota democrata, tende a votar como a classe operária branca.

(Este é um texto construído a partir de comentários a um post no muralRaquel Ribeiro, respondendo a alguns comentários do Ricardo Noronha. Fiz esta espécie de frankenstein para não me esquecer do que tinha escrito, não para isolar isto da discussão que o motivou.)

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Uma lista de listas sem Quase Nada

Nesta altura do ano, os críticos fazem listas do que gostaram no ano. Eu pela minha parte faço listas dos críticos que gostei de ler este ano. Sou um grande fã do ensaio crítico.
 
E não, não me consigo lembrar de quase nada que tenha gostado de ler na imprensa portuguesa, quase nada que me tenha parecido fresco na forma, no tratamento ou no assunto. Pode ser que me tenha escapado alguma coisa e aceito sugestões, em particular na área da literatura, da arquitectura, da arte ou do cinema. Não li nada sobre design que me tenha ficado.
 
Do que gostei? Leio o André Tavares sobre arquitectura. Da revista Electra em geral, um serviço exemplar de António Guerreiro, e de um ensaio do Pedro Levi Bismarck sobre turismo. Não é bem crítica, tal como não são bem crítica os artigos do André Barata, de que também gosto. Espero os posts do facebook do Bruno Baldaia como se fosse um assinante. É o pouco que me vai ficando.
 
Da crítica propriamente dita, acho que por aqui se tornou uma formalidade. Parece aquele discursos que os presidentes da junta repetem qualquer que seja a ocasião. Só mudam alguns substantivos, o resto fica tudo igual. E quase que se diz, «ainda bem». Porque quando a crítica arrisca, enche o peito e se acha dura, fica à vista a imensa preguiça mental, o agressivo conformismozinho.
 
Não há indício maior dessa preguicite agressiva, dessa vontade de não pensar, do que a constante invocação da ameaça do «políticamente correcto». Só esta semana no Expresso, e sem andar à procura, contei gente a rezingar contra o politicamente correcto por duas vezes. É uma maneira delicada, elíptica, politicamente correcta, de rezingar contra os que acham que vale a pena discutir a igualdade de género, entender a literatura escrita por afro-descendentes nos seus próprios termos, não gozar com ciganos ou homossexuais em nome da tradição.
 
É uma má vontade contra perceber que os critérios estéticos mudam e ainda bem que mudam. A crítica portuguesa acomodou-se ao seu papel tradicional de guarda alfandegário. Pratica o que pensa ser divulgação quando na verdade é um sistema de filtragem. É um espectáculo triste ver quase tudo o que se produz de mais interessante e vital ser carimbado de politicamente correcto. E o que passa, o que tem que passar, ser reinterpretado de acordo com os critérios ultrapassados , rançosos do lugarelho.
 
Em contraponto, para quem queira uma crítica inventiva e celebratória, basta ler a New Yorker ou o New York Times. São dezenas de formas, de formatos, de estilos, de ideias. Um dos ensaios que mais gostei de ler este ano apareceu na New York e era uma apreciação da banda de prog rock Yes sob a forma de uma carta de resposta a um leitor deprimido. Dos formatos que me dá mais gozo ler são os recaps, as anotações que se faz a séries de televisão e que, quando são bem feitas, nos aumentam o prazer de espectador. Por aqui, não há nada disso, nem pode haver.
 
Enquanto nunca se fez tanta crítica interessante, combativa, progressista, aqui carpe-se o fim da crítica, garante-se que se vive num período pós-crítico porque se leu isso num livro qualquer há dez anos. É uma tristeza.

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2019 ainda…

Além da exposição da bienal de Design, preparo uma exposição mais pequena da qual ainda não posso dizer muito, excepto que é sobre publicações. Para além disso, preparo também dois livros, um deles associado à bienal, o outro sobre publicações.

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2019

O próximo vai ser para mim um ano de exposições. Ando a preparar «A Força da Forma» para a Porto Design Biennale. É uma exposição que tenta tratar a política não como um tema do design mas algo que lhe faz parte da essência e lhe determina a identidade a cada passo. Sem querer adiantar muito, trata do modo como o design se transmite em Portugal, como o design cá entra, como sai, como se desloca, tanto no espaço como no tempo. Trata de inspiração, de tradução, de roubo, de reaproveitamento, de influência. Trata de estilo e de gosto.

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Percorrer a dor em banda desenhada

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Faz parte de ser pai uma extensa colecção de medos, o maior deles a morte dos filhos.

Já não faço banda desenhada há muito tempo, mas ainda me interesso por teoria, em especial livros que ensinam a conceber argumentos. Fiquei muito feliz quando encontrei o livro «The Art of the Graphic Memoir: Tell Your Story, Change Your Life» (2018). Comprei-o de imediato. Conheci o seu autor Tom Hart num Salão de Banda Desenhada do Porto, ainda na década de noventa. Ele veio num grupo associado à editora Black Eye (salvo erro), que incluía Jason Lutes e Jessica Abel. Já era fã de todos eles em especial do Tom. Trocámos desenhos, saímos à noite. Eu estava em trabalho, eles também, mas foi das coisas mais próximas que tive daquelas férias que se tem quando se é adolescente e se lembram para sempre.

«The Art of the Graphic Memoir» é uma espécie de making of pedagógico de «Rosalie Lightning» (2016), a história que ele escreveu e desenhou sobre a morte súbita da sua filha, com pouco menos de dois anos em 2011. Hart nunca tinha feito histórias autobiográficas, esta foi a primeira, a maneira que encontrou de lidar com a pior das tragédias. Demorei dias a decidir-me a lê-la. É muito difícil enfrentar esse medo, mesmo quando é ficção, mesmo quando acontece a outros. É um terror supersticioso, dos piores.

Li-o apenas porque o conheci. De outro modo, ser-me-ia impossível. No fim, não me arrependi. Uma vez que se decida começar, vale a pena terminá-lo. Tem que se terminá-lo. É sobre o percurso de um luto e é também, em si mesmo, um objecto de luto. Passa-se por momentos terríveis mas chega-se ao fim e sente-se a serenidade possível, a aceitação possível.

É a tentativa de encontrar uma causa e um sentido na morte repentina, arbitrária de uma criança de dois anos, um ser humano que está no limiar da linguagem que percebemos e nos percebe de um modo primordial, mas que deixa tantas coisas de fora. Quando não há um aviso, conclui Hart, tudo pode ser e não ser um aviso. Uma frase repetida dias antes que não se sabe o que queria dizer. Uma última foto. Não me lembro de nada antes dos meus dois, três anos. É terrível imaginar uma vida inteira ali, nesse ponto cego da memória. Esta memória gráfica é também isso, uma tentativa de lembrar essa pequena vida.

Quando o conheci, Tom fazia as suas bds enquanto guardava um parque de estacionamento à noite. Não conseguiu sair dessa precariedade estes anos todos. Esta é a história de um luto prostrado em sofás de casas de amigos, transportado em carros emprestados com maus radiadores, pago com multibanco com o fundo das contas.

É um objecto que não quero resumir, cheio de momentos enormes, terríveis, descritos com uma certeza e uma delicadeza que nos deixam a tremer. Um objecto sem oportunismo, sem falsos sentimentos.

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E ainda…

Ainda tenho o Vasco Rosa a moer-me a cabeça via mail. Tenho alguma dificuldade a imaginar o que se passa na cabeça de alguém que, quando lhe chamam a atenção de um erro que publicou à vista de toda a gente num jornal, prefere vir chatear a pessoa sobre quem se enganou via mail a simplesmente corrigir o erro.

Acho piada que a resposta genérica de Rosa a quem lhe responde às críticas seja achar que ficam ofendidos pelo que escreveu. Tem razão. É uma sensação muito estranha ser avaliado com sobranceria por um tipo que não tem o professionalismo de corrigir um erro factual básico e prefere vir debitar insultos para a conta de mail da pessoa sobre quem inventou factos.

Pouca gente se dará ao trabalho de verificar o que escreve um crítico, se o próprio crítico nem se dá a esse trabalho. Estranhamente, as pessoas ainda acreditam que um jornal se responsabiliza pela qualidade do que mete em pixeis. Ou então estão-se nas tintas. Se um colega meu na universidade publicasse um erro factual num paper, numa tese, ou no que fosse, e se, em vez de o corrigir, se dedicasse a moer a cabeça de quem o assinalou, seria alvo de muita chacota – e isso seria o menos.

(Já nem lhe leio os mails. Basta-me ler o remetente.)

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Ano Zero

Já tínhamos ido ao hospital por causa das contracções mas mandaram-nos para casa. À segunda, ficámos. Na sala de espera, sozinho depois da Susana entrar, esperei, rodeado de fotos gigantes de bebés, cada um com o seu nome e a sua data. As enfermeiras ensinaram-me um caminho complicado para a casa de banho dos pais que passava por detrás dos quartos, uma passagem secreta, estreita entre uma parede vazia e janelas altas por onde viam os parques de estacionamento vazios e mais longe as formas eriçadas de triângulos dos pinheiros. Ensinaram-me também outras coisas que entretanto esqueci, e disseram-me muitas vezes que agora era esperar. Tinha tanto sono das noites de contracções que adormeci numa cadeira. Sempre que nos disseram que agora era esperar, alguma coisa acontecia e o processo acelerava. Chegaram-me a mandar embora para casa para segundos depois me dizerem que as águas tinham rompido, que já se via o cabelo. Que era agora. E foi. Saiu num instante, inteira, sem transição, como um objecto a aparecer de esticão num filme mudo. Embrulharam-na num pano verde e encostaram-na entre uma mesa e a parede, a chorar, a chorar. Um ano atrás começava a maior noite do ano durante a qual havia de nascer a Rosa, tão pequenina.

Quando apareceram no facebook as primeiras imagens do vestido, eu vi-o em listas negras sobre fundo azul, mas descobri que vendo-o no monitor inclinado do portátil, a apanhar o máximo de reflexos, ele ficava dourado sobre fundo branco. Também acontecia o mesmo se visse apenas uma pequena faixa de cada vez. Ao fim de umas tantas vezes, já não o conseguia ver em azul e negro. Nunca mais consegui. Com a Rosa foi o mesmo, deslizei para um novo modo de percepção. Foi como se o que era fundo numa vida anterior se tivesse tornado figura. Passei a ver os filmes de adolescente sob o ponto de vista do pai. Comove-me ver bebés.

Penso muito no About Time, um dos piores filmes do Richard Curtis, o do Quatro Casamentos e Um Funeral, sobre um homenzito que descobre que lhe basta querer para voltar atrás no tempo. Graças a esse dom, vai conquistando por tentativa e erro, muitas tentativas e erros, mulheres, até que encontra a certa. Irritou-me que fosse um talento herdado apenas pelas homens da família, que as mulheres fossem apenas peões passivos, ignorantes, daquele jogo. Havia porém um detalhe pungente: uma vez tendo filhos, não se podia alterar o passado antes do seu nascimento porque se corria o risco de voltar ao presente e ter um filho diferente, resultado de uma combinação distinta de espermatozóide e óvulo. Ou nem existir de todo.

Um mau filme que apanhava bem um único e grande pormenor. Depois dos filhos, o passado já é só e realmente o passado. Penso muito nele, nos meus tempos de escola, da primária, do ciclo, do liceu, mas vejo-me a mim mesmo com os olhos de um pai, tal como vejo os meus primeiros colegas, os meus primeiros amores. Vejo-me como um filho.

Sim, é nisto tudo que penso ao entrar na segunda noite mais longa desde que ela nasceu. Penso no ano que passou. Só faz anos amanhã, mas faz mais sentido escrever isto agora, quase no fim do primeiro ano, do ano zero. Amanhã será outro.

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Balanço

Em jeito de balanço, este ano bloqueei muito menos gente no facebook. Aliás, a pior discussão que tive no que diz respeito à falta total de qualidade nem foi tida aqui mas por mail, que é uma variante ainda mais estúpida daquelas pessoas que têm vergonha de discordar em público e vêm-me chamar nomes através de instant message. Não há paciência. Já nem lhes respondo.

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Desigualdade de Género

Por cá, será muito provavelmente o mesmo. A minha própria opinião sobre o assunto que expus no livro «O Design que o Design Não Vê», é que a própria natureza do design, aquilo que se acredita ser o design, é definido em parte para excluir práticas onde as mulheres são mais visíveis. Para se perceber a desigualdade dentro do design, é preciso reflectir sobre a natureza do próprio design.

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Guarda Serôdio

Ainda não sabia bem o que fazer no meu doutoramento. Estava a pensar em ética no design mas considerava mudar de tema, e apareceu a oportunidade de inventariar o acervo de uma das grandes figuras do design português, ainda vivo mas bastante doente. Como costuma acontecer nestes casos, havia alguma crispação na família sobre o que fazer e acabei por deixar a coisa cair ainda antes de começar. Não me arrependo.

Tenho muitos colegas que trabalham com velhos designers e as suas famílias. Os relatos metem-me sempre aflição. As pessoas são muito protectoras e, mesmo quando se desenvolvem cumplicidades, é comum ir tudo por água abaixo por um mal entendido, uma palavra mal percebida, um rumor. É difícil lidar com viúvas e familiares, confidenciava-me um colega que se especializou em história do design português. Será o mesmo na fotografia, no cinema, nas artes plásticas. Há um acervo. Há um guardião. Há muita cautela.

O mais preocupante é quando o próprio investigador se arvora por sua vez em guardião do acervo, começando a policiar o que é produzido sobre o assunto, inviabilizando ou até insultando quem se atreve a usar o seu trabalho de investigação chegando a conclusões «não-autorizadas».

A investigação sobre fontes primárias em design é bem intencionada, mas tosca e pouco informada. Fazem-se entrevistas, vai-se jantar com os veteranos, organiza-se o acervo, registam-se os relatos anedóticos e pouco mais. Faz-se a coisa a olho ou, na melhor das hipóteses, de acordo com a metodologia genérica usada nos mestrados e doutoramentos. É a talho de foice mas ainda assim tem valor pelo inventário e pela catalogação. O problema é mesmo quando se acha que esse é o fim do caminho.

É preciso todo um trabalho secundário de sistematização e interpretação dessas fontes primárias que só muito raramente é feito. Perceber tendências, estudar influências, regularidades, etc. A consequência é uma história atomizada, assente em nomes próprios, em portfolios, em detalhes anedóticos, que é pouco mais do que inútil quando nem sequer pode servir de matéria prima para estudos mais aprofundados, porque aparece logo alguém a protestar que se está a desrespeitar as fontes, que é ignorância, etc.

Confesso que durante bastante tempo tolerei o melhor que pude esta atitude, mas já não tenho paciência. A vida é curta.

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Vago

Vou ser vago. O design e conteúdo de certa coisa piorou depois de uma remodelação. Pensei escrever sobre o assunto, mas espreitei a ficha técnica e desisti ao saber que um dos autores é um imbecil com o qual já me cruzei algumas vezes.

Prefiro não escrever sobre o trabalho de pessoas que não suporto, sobretudo se não presta. A crítica negativa que me sabe melhor fazer e ler é sempre uma descoberta. A que despacha com impaciência aquilo de que não gosta é uma facilidade e um chavão.

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Sobre esquecer

Não sei as datas ou os nomes. Um trisavô ou tetravô meu terá morrido de súbito, à mesa da família na Alemanha. A filha mais velha foi encarregue de levar o corpo para Inglaterra, para ser enterrado no local onde nasceu. O caixão chegou mas a tia desapareceu. Nunca foi encontrada. Não sei quem me contou a história. Não sei se é verdade. Não sei se a minha memória a alterou. Penso muitas vezes na história da tia desaparecida, vejo-a como uma constelação de fragmentos, que incluem os velhos álbuns fotográficos, a situação (mas não as pessoas) de quando ouvi a história pela primeira e única vez, a imagem de um navio de passageiros, tudo a oscilar como as peças de um jogo antigo do qual se perderam as regras.

Tenho muitas memórias assim. De histórias, filmes, livros, que li uma única e marcante vez e não voltei a encontrar nunca. De pessoas, que esqueci ou que morreram. De sítios, aonde sei que será muito difícil regressar. Tenho alturas do ano em que isso tudo me dói.

É possível que a mania de coleccionar livros tenha que ver com isso, com tentar refazer a forma das constelações incompletas, reconstruir as regras dos jogos antigos. Os meus livros favoritos são os que me servem como lembrança do percurso que me levou a eles. Servem como paliativo de já não os poder procurar de novo.

Com a internet, é mais fácil encontrar o que se pensava perdido para sempre. Não se descobre tudo, apenas o suficiente para nos fazer querer ter mais. Encontrar o livro que um colega nos mostrou quando ainda nem sabíamos ler. Uma cópia da banda desenhada que a mãe ou a avó ofereceram à caridade. O nome do sítio onde se passaram aquelas férias antes dos nomes dos sítios serem importantes. Encontra-se uma foto da primeira pessoa de quem se gostou, há muitos anos, muitas cidades e muitas escolas atrás.

A memória na era da internet é um vício que não se larga. Que se alimenta a si mesmo, uma acumulação irreversível de memória que tem um horror ao vazio, que não larga nunca nada. Já não é possível descartar o lixo, o que não serve, o que faz mal, os pedaços toscos de teorias que já se sabe que estão erradas, de projectos que falharam. A obsessão com uma memória absoluta é o que sustenta quem acha que se deve ouvir outra vez quem acha que a terra é plana, que as vacinas provocam o autismo, que vale a pena dar a palavra a nazis. Qualquer coisa que subtraia a esse vício terrível de guardar tudo é um crime e uma censura.

A lembrança do Holocausto, da Primeira Grande Guerra, da Guerra Colonial, do Salazarismo, não são memórias como as outras, não são bibelots vintage. São formas poderosas, gigantescas de luto, de aprender que lembrar nem sempre deve ser reencontrar. Que esquecer também é um percurso.

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Mário Moura

Mário Moura, blogger, conferencista, crítico.

Autor do livro O Design que o Design Não Vê (Orfeu Negro, 2018). Parte dos seus textos foram recolhidos no livro Design em Tempos de Crise (Braço de Ferro, 2009). A sua tese de doutoramento trata da autoria no design.

Dá aulas na FBAUP (História e Crítica do Design Tipografia, Edição) e pertence ao Centro de Investigação i2ads.

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