Já apanhei gente de direita a comparar a censura do Estado Novo com o politicamente correcto. Já apanhei gente de esquerda, até dessa altura, a equivaler o politicamente correcto a uma nova Pide. Até parece que a função da censura era criticar o uso de linguagem inclusiva na imprensa e na literatura. Era uma espécie de Comissão da Igualdade de Género. Depois vinha a Pide, que prendia e torturava os Ricardos Araújos Pereiras, as Claras Ferreira Alves e os Pachecos Pereiras, e todos os que chamam paneleiro a quem acham cobarde, que abordam mulheres na rua e acham que é a sua obrigação declarar que as cobriam todas de cuspe, e que acham um entrave à sua própria liberdade alguém os criticar por isso.
É ridículo mas só demonstra como o 25 de Abril foi só um pé na porta. Ficou tanta coisa ainda por fazer. E tanta coisa que se desfez. O 25 de Abril não se fez para que alguém ache que é um seu direito achar em paz e em sossego que um casal do mesmo sexo a passear de mão dada é uma obscenidade. Pode achar isso, mas não em paz, nem em sossego. Não se fez para que um patrão possa assediar às claras as suas funcionárias porque já não se está no tempo da velha senhora e é preciso ser mais descontraído e deixar-se ir. Fez-se para que as funcionárias, e quem quer que seja, possa ter a sua própria opinião sobre isso, e poder dizer que não, e ter a possibilidade para recorrer à intervenção do Estado para pôr cobro a uma situação de assédio.
Não se fez para que se insista no silêncio de um afro-descendente ou de um cigano ou de um transexual ou de um imigrante quando denunciam a discriminação de que são alvo. Não se fez para que se justifique esse silêncio com a desculpa que estamos numa sociedade livre e igual, e que portanto quem acha que não se deve calar ou voltar para a sua terra.
Também gosto da iconografia do 25 de Abril, de lembrar. É importante. Mas a melhor maneira de o celebrar seria todos os anos haver mais gente a usufruir de mais liberdade, de liberdades novas.
Filed under: Crítica
Comentários Recentes