Talvez por o grafitti ser tido por efémero haja tantos livros a documentá-lo. Nos anos que se seguiram ao 25 de Abril apareceram uns tantos, procurando registar a torrencial produção de grafittis que ocorreu após a revolução. O livro de cima chama-se As Paredes em Liberdade foi editado pela editoria Teorema em 1 de Agosto de 1974. As fotografias são José Marques e a maquete é de Fernando Felgueiras e Amélia Afonso.
O de baixo chama-se merda e regista a obra de um grafitter anónimo que, desde a década de 80, pintava obsessivamente a palavra «merda» nas paredes do Bairro de Benfica. Foi distribuído gratuitamente em 2006 numa exposição de Alexandre Estrela no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães. A autoria é do artista, o design gráfico é de Pedro Nora.
No desdobrável que acompanha a exposição, há uma pequena foto do livro da Teorema, assinalando a referência. O texto explica o projecto mas não acrescenta nada sobre o seu design:
«De 20 em 20 metros, numa consistência e rigor formal impressionantes, merda emerge como marca territorial, existencial, num trajecto que se adivinha muitas vezes percorrido. Este desabafo constante, escrito numa má caligrafia e num tom presente, encontra-se longe da carga política das palavras de ordem e dos apelos ao voto do passado; longe da depuração formal narcísica dos tags do presente. Merda emerge a temporal de uma forma metódica serial, em sintonia com a monotonia do bairro para onde foi projectada.»
Se entendermos o design enquanto forma, os dois livros são semelhantes o suficiente para que, de relance, pareçam da mesma colecção. Se entendermos o design como um processo, já não é possível falar de um design semelhante. As funções de um e de outro são distintas. Merda apropria-se do formato de As Paredes em Liberdade para marcar uma posição, equidistante dos grafittis da revolução e dos tags do presente.
É comum falar-se do design em termos de uma adequação ou de até uma oposição entre forma e função. Porém, objectos como merda mostram que a forma não se limita a seguir a função, mas tem as suas dinâmicas próprias, a sua própria inércia. Um formato pode repetir-se ao longo do tempo, assumindo significados e funções distintas.
Filed under: Crítica
Comentários Recentes