Existiu com toda a certeza um cinzento mate na literatura portuguesa do começo da década de 1990. Podia ser mais ou menos escuro. Podia ser uniforme ou granuloso. Envolvia por completo os livros, assumindo matizes conforme a capa, a lombada, a contracapa. Da cinza formavam-se imagens, sombras de caras, de paisagens. Nas bordas visíveis das folhas podia ser branco, se possível pérola. Ou podiam ser pintadas também de negro ou de uma cor que refulgisse. Um livro fechado era uma placa compacta de cinzas sólidos, contínuos. Um livro de poesia, por exemplo, provocava as mesmas sensações físicas, tinha o mesmo toque que um portátil ou um smartphone bem desenhado.
Falo da edição da Poesia Toda do Herberto Helder que tinha na capa um rochedo suspenso entre nuvens e rebentação. Falo dos livros de poesia do Al Berto. Falo da revista Ler, quando tinha fotos do Daniel Blaufuks a ilustrar viagens ao deserto do mesmo Al Berto. A geometria cinza destes livros tinha o seu centro na Assírio & Alvim. Andava também pelo design de Cayatte para a Ler. Espaçavam-se muito as maiúsculas dos títulos. Aumentava-se a entrelinha. As páginas eram arranjos abertos de caracteres, de linhas de colunas.
As fotografias, quando eram boas (sobretudo Blaufuks, Nozolino ou, noutras bandas, Inês Gonçalves), eram escuras, profundidade de campo achatada, contornos esboroados, detalhes enchendo até ao bordo. Nunca havia um branco que não tivesse aquele pó negro das fotos que queimam na ampliação. As ilustrações, quando eram boas (Luís Manuel Gaspar), tentavam o mesmo reproduzindo o mesmo tipo de foto com lápis ou guaches cinza, que a reprodução tornava azulado.
O cinza fotográfico, prova de contacto sobre-exposta, da Assírio era, para um aluno de design, a cor mais interessante dos escaparates. Tinha um brilho invertido, mate e negro, contrário de toda a edição em Portugal da altura – tons pastel, grafismo pós-moderno, rabiscos pop, etc. Ligava-se à música que se ouvia, os Dead Can Dance, This Mortal Coil, etc. Aos discos da 4Ad, à fotografia de Nigel Grierson, às montagens elaborados de Russell Mills ou ao design de Vaughan Oliver. Quase toda a poesia portuguesa herdou traços deste desejo de cinza que com o tempo passou. A própria Assírio renegou a geometria mate, preferindo capa dura com a lombada redonda.
A maior dificuldade de uma história do design em Portugal reside no silêncio. O historiador não tem outro remédio se não falar de datas, de legislação, porque pouco se sabe do que alguém sentia perante um objecto de design. Uma das funções mais negligenciadas do crítico é registar a sua sensação perante um objecto. A mais comum – e a mais inútil – é averiguar se um objecto merece a posteridade. Tento sempre que possível fazer estes exercícios de memória, de transcrever para palavras a contracção interior que se sente perante um objecto de design significativo. Não nego a nostalgia mas o importante é, acima de tudo, o registo.
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