A minha escolha para filme da década é An Oversimplification of Her Beauty, de Terence Nance (2012). Não sei se estreou em Portugal. Vi-o há alguns anos na net. É um dos meus filmes favoritos e, sem dúvida, aquele que para mim representa melhor esta peculiar dezena de anos.
Uma década é um corte arbitrário. Impõe sobre um número certo de anos uma unidade artificial, uma profecia invertida, impossível à partida, óbvia apenas no fim. É decidindo os seus melhores filmes, livros, pessoas e acontecimentos que se define afinal a década. Antes disso, era apenas caos e aspirações. Tempo em cru.
Escolho um filme que não há-de aparecer em muitas listas mas representa para mim e com um eficácia minoritária os anos 2010. Está na intersecção perfeita, certeira, do feixe das características. Não o consigo imaginar em qualquer outro período. É um filme do hipsterismo, da austeridade e da precariedade mas propondo também e de um modo único uma identidade afro-americana.
É intimista ao ponto de parecer um empreendimento solitário: escrito, realizado e interpretado pelo próprio. É ferozmente, mas também delicadamente, independente. Pelo modo ensaístico, documental e poético como vai destrinçando com obsessão um estado de espírito lembra a sinceridade rigoroso e anti-irónica da geração de David Foster Wallace – que transbordou da década anterior. Inscreve-se num espaço próximo mas não equivalente do cinema mumblecore. É demasiado intrincado, inventa demasiado a sua próxima linguagem para isso. Não se filia. Pela profusão de recursos narrativos, e pelo seu rigor poderia ser uma espécie de Wes Anderson.
Contudo, é também uma visão e uma consciência especificamente afro-americana – aproxima-se da série de televisão Atlanta, de um afro-surrealismo lírico (Nance fez também a sua própria série de televisão, a belíssima Random Acts of Flyness). É um filme que junta a sensibilidade urbana, precária, da crise económica – aquilo a que se chama depreciativa e injustamente hipster – com a consciência identitária da segunda metade da década.
Não digo que o meu filme português da década é As Mil e Uma Noites porque habita a primeira metade da década, a da austeridade, da Troika, do desemprego. O filme de Miguel Gomes já parecia um pouco impossível nos tempos da Geringoça. Parece simplesmente utópico, agora, nos tempos do Ventura.
Pelo mesmo raciocínio, não é possível escolher uma só figura política para esta década, a que reuniu Obama e Trump. Aqui em Portugal, escolho Pedro Passos Coelho, santo patrono da austeridade, desemprego e emigração. Seria ele a provocar a aliança das esquerda a que se chamou Geringonça (e não o Livre, como Rui Tavares tem defendido). Seria ele a legitimar politicamente André Ventura e o seu programa.
(Ironicamente, penso ter sido o Livre, e em particular Joacine Katar-Moreira, o pretexto para o enterro definitivo de toda e qualquer geringonça ou entendimento entre as esquerdas, a maioria das quais estão cobardemente dispostas a ignorar o racismo em nome de uma luta de classes esbranquiçada, em nome de não alienar os piores instintos do seu eleitorado. A esquerda portuguesa, tal como o centro e a direita, decidiu que lhe incomoda mais chamarem-lhe racista do que dizer ou fazer coisas racistas.)
O texto termina abrupto. Escrevo-o no comboio, enquanto viajo com a minha esposa e filha. O sol bate-me no ecrã e na cara da minha filha que não consegue dormir. Um idiota no lugar da frente recusa-se a baixar a cortina porque pagou para ver a vista. O revisor diz que não há nada a fazer. Tudo dependeria, alegoricamente, do civismo.
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