The Ressabiator

Ícone

Se não podes pô-los a pensar uma vez, podes pô-los a pensar duas vezes

Monstros cegos

Quando no fim da adolescência, ainda em Vila Real, decidi ser cinéfilo, comecei a cumprir com trepidação certas normas. Ao contrário dos «civis», comprava o meu bilhete para as filas da frente, ao centro, e ficava todo a espumar quando outro se instalava à minha frente. Quando havia intervalo, ignorava-os, ficando sentado. Tudo aquilo apontava para um ritual, uma fé, no filme como algo não-mediado, sem plateia, sem intervalos, só um ecrã a encher-nos os sentidos no limite do confortável.

Agora, percebo essa cinefilia como um privilégio. Ou melhor, como a aspiração a um. Em Vila Real, a cópia do filme chegava-nos depois do filme ter saído de exibição no Porto, ficava connosco uns dias seguindo depois para outras paragens. Já vinha com riscos, com as marcas de alguém a ter visto antes de nós. Ser cinéfilo era reduzir ao mínimo a distância àquelas imagens, àquelas luzes e sombras, produzidas por uma indústria distante.

Agora, sou pai de um bebé no meio de uma pandemia e o modo como vejo os filmes é aos dez, vinte minutos por dia, no ecrã de um computador.

Ando há uns dias (semanas?) a ver Passing de Rebecca Hall e a gostar. O livro de Nella Larsen de onde foi adaptado é uma obra prima sobre o processo social que lhe dá o nome – “passing” – através do qual uma pessoa racializada, por vezes mesmo famílias inteiras, se decidia a, clandestinamente, passar por branca. Passavam à clandestinidade, usando a expressão portuguesa, à vista de todos. Mudavam de terras, de comunidades, de amigos, cortando drasticamente com o passado, num processo de exílio.

A um branco, só mal se pode imaginar o que será isso. Talvez a literatura ou a arte nos ajudem a perceber. Por exemplo, estas vidas serão talvez semelhantes às do Conde de Montecristo, e a sua passagem do degredo ao privilégio. Mas mais uma vez não será aqui que encontramos uma consciência branca do que é o Passing. Alexandre Dumas era neto de escravos.

Há outras ficções de vingança associadas ao passing, como o Irei Cuspir-vos nos Túmulos, de Boris Vian, sobre um negro de pele clara que se faz passar por branco para vingar o linchamento do irmão.

Tenho andado a ler a crítica portuguesa de cinema a Passing e, embora elogiosas, penso que falham a dimensão fundamental do filme – a última que li foi a de Luís Miguel Oliveira no Público. Uma dimensão que antecede a do cinema e a da cinefília e que tem que ver com a visualidade.

Passing é um filme sobre ver e ser visto. Tal se percebe pelos planos da personagem principal a olhar o mundo através de um véu. Penso que era WJT Mitchell que lembrava essa ideia, não sei se originária em DuBois, que a raça era um véu, um ecrã que esconde mas também que funciona como um filtro que revela.

É um filme sobre os olhares e onde isso se vê melhor é talvez no uso do preto e branco. O que é radical no filme é colocar-nos não na posição de um negro, mas na posição de um branco – de uma daquelas pessoas que se recusam a ver cores. Retirando-nos as cores, em vez de atingirmos a tão propalada utopia pós-racial, o que obtemos é uma tensão permanente que nos põe a policiar quem parece ser e quem não parece ser. E a empatizar finalmente com personagens que, tal como num filme de terror, estão escondidas, sem respirar, enquanto monstros cegos por elas resvalam, farejando.

Filed under: Crítica

O designer como forma e novo instagram

Tenho andado a escrever artigos em inglês na minha revista/blog unseenby.design.

Hoje, publiquei um sobre o designer como forma, usando o caso Ernst Bettler como mote.

Também podem seguir o meu novo instagram. Procure

Filed under: Crítica

Esquerdotropicalismo

Penso que a esquerda portuguesa se tornou bastante mais conservadora nos últimos anos. A conversa da «ditadura do politicamente correcto» é talvez o maior indício.

Apanha-se gente relativamente nova a embarcar nisso mas também «veteranos» da luta anti-fascista de todos os quadrantes. É algo que une o Ricardo Araújo Pereira, o Mário de Carvalho e até gente na esquerda da direita que também foi anti-fascista como o Pacheco Pereira.

Essa conversa tem variações. A versão pura, alguém queixar-se do politicamente correcto, é também a mais amorfa, uma coisa vaga que se atira a tudo sem ser preciso especificar — a bom entendedor.

Depois, há versões mais afinadas que, até evitam a expressão «politicamente correcto» mas cujo efeito é o mesmo. Fala-se dos excessos do #metoo, do Black Lives Matter ou do interseccionalismo — excessos que sucedem invariavelmente quando as bombas caem demasiado perto, quando é um ícone qualquer mais ou menos associado à esquerda que foi acusado de violação, ou de homofobia ou de racismo.

Toda a história da esquerda, remota ou recente, é um campo minado, e o que se escolheu fazer aqui em Portugal é ficar o mais calado possível sobre isso. Instalou-se uma espécie de lusotropicalismo invertido, que corresponde àquilo que é seguro e mais ou menos consensual discutir em termos de anti-racismo, lgbtq+ e feminismo.

Por um lado, há pessoas que discutem e investigam estes assuntos com sentido de causa, por outro há muita gente que os discute ou tolera apenas como uma forma de esquerdotropicalismo, porque acredita ou quer acreditar que a esquerda teve sempre, por inerência, posições e relações positivas com minorias racializadas, lgbtq+ e mulheres. Até se admitem «excessos» mas são tidos como «distorções», o que é um modo fácil de não pensar demasiado neles.

O que fica para discutir é muito pouco. Em geral, «casos» que se querem o mais possível isolados, e se possível no campo do «inimigo». Daí que se acabe a discutir estátuas, nomes de ruas, vocabulário, e se entre a medo em coisas como a homofobia entre a esquerda reduzindo-a a «casos», como por exemplo o de Júlio Fogaça. Seria bastante mais interessante e produtivo ver o que é sistémico.

Recentemente, li trabalhos sobre anti-semitismo sistémico dentro da esquerda que recusam a ideia do caso isolado, vêem tendências e as ligam entre si que são um exemplo do que pode ser feito. Há também muito trabalho feito sobre a existência de racismos e lgbtfobias em movimentos laborais e progressistas nos EUA (é ver a obra de David Roediger).

Penso que não se faz algo semelhante aqui em Portugal porque há um consenso «produtivo» que une largos sectores da esquerda e da direita, e que vê tudo o que é anti-racismo, activismo lgbtq+ e novos feminismos como algo a erradicar ou, numa versão mais soft, a regimentar.

Filed under: Crítica

Mário Moura

Mário Moura, blogger, conferencista, crítico.

Autor do livro O Design que o Design Não Vê (Orfeu Negro, 2018). Parte dos seus textos foram recolhidos no livro Design em Tempos de Crise (Braço de Ferro, 2009). A sua tese de doutoramento trata da autoria no design.

Dá aulas na FBAUP (História e Crítica do Design Tipografia, Edição) e pertence ao Centro de Investigação i2ads.

História Universal do: Estágio

O "Estágio"
O Negócio Perfeito
Maus Empregos
Trabalho a Sério
Design & Desilusão
"Fatalismo ou quê?"
Liberal, irreal, social
Conformismo
Juventude em Marcha
A Eterna Juventude
Indústrias Familiares
Papá, De Onde Vêm os Designers?
Geração Espontânea
O Parlamento das Cantigas
Soluções...

História Universal dos: Zombies

Zombies Capitalistas do Espaço Sideral
Vampiros, Zombies, Classe Média

Comentários

Comentários fora de tópico, violentos, incompreensíveis ou insultuosos serão sumariamente apagados.

Arquivos

Categorias