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Se não podes pô-los a pensar uma vez, podes pô-los a pensar duas vezes

O “Estágio”

Já foi há uns anos que ouvi pela primeira vez alguém defender a noção de um preço mínimo por trabalho de design. O designer em questão pretendia elaborar um abaixo-assinado onde exortava os designers a cobrarem os seus trabalhos sempre acima de um determinado preço (um logótipo seria cobrado sempre acima do preço X; uma paginação acima do preço Y, igual para todos os designers portugueses). Ele argumentava que, de outra maneira, muitos clientes acabariam por preferir trabalho mais barato, mesmo que tivesse menos qualidade ou fosse realizado por designers amadores ou sem experiência, obrigando os designers profissionais a baixarem os seus preços para poderem competir. Pelo contrário, com a criação de um preço mínimo, o cliente seria “encorajado” a escolher o designer com melhor qualidade.

Nunca mais ouvi falar do abaixo-assinado, mas na altura ocorreu-me que um preço mínimo impediria os jovens designers de usar uma das suas maiores vantagens, que é a disponibilidade – consciente ou inconsciente – para trabalharem por pouco ou nenhum dinheiro. Sem poderem concorrer com os recursos de uma firma já estabelecida, muitos jovens designers teriam que procurar emprego numa dessas firmas até terem recursos e experiência suficientes para formar o seu próprio estúdio, ou arranjar um emprego noutra área, trabalhando entretanto como designers nos tempos livres.

No entanto, numa economia de mercado não costuma ser legal fixar um preço mínimo. A Ordem dos Médicos, por exemplo, foi processada pela autoridade da concorrência quando tentou estabelecer um preço mínimo para os serviços médicos. Outro exemplo é a associação de designers americana AIGA que, nos seus estatutos, só pode aconselhar os designers a não trabalharem de graça; seria ilegal tornar isso obrigatório. Mas, mesmo sem recorrer a argumentos legalistas – e capitalistas – é fácil constatar que, se o trabalho gratuito é mal visto no contexto da concorrência entre firmas, é bastante bem aceite noutros contextos, sendo mesmo considerado um ritual de passagem quase obrigatório na formação de um jovem designer. Falo evidentemente dos “estágios” não remunerados.

Muitas firmas empregam jovens designers nos chamados “estágios” (por vezes não existe qualquer tipo de ligação a uma escola, o que torna a designação duvidosa). Por um lado, o “estágio” permite à firma realizar maior quantidade de trabalho, sem custos de produção acrescidos, aumentando portanto a sua margem de lucro. Por outro lado, a firma fornece ou completa a formação dada pela escola num ambiente “real” – se descontarmos a ausência de salário, claro. No entanto, esta formação limita-se muitas vezes a deixar os “estagiários” à solta, com acesso à biblioteca do estúdio, a equipamento de boa qualidade, etc. Como muitos destes primeiros empregos começam a meio do Verão, logo a seguir ao fim das aulas, é bem provável que o jovem designer nem sequer ponha os olhos no seu patrão durante os primeiros tempos.

O estágio não remunerado depende da credibilidade e qualidade do empregador. No entanto, se a maioria do trabalho do atelier começa a ser feito por jovens designers inexperientes e mal supervisionados que se despedem mal ganham alguma experiência, o resultado é que a qualidade média do trabalho produzido pela firma ao longo dos anos acaba por ser a de um jovem designer inexperiente. Desta maneira, e porque uma firma com muitos “estagiários” pode fazer muito mais trabalho, a prática do “estágio” acaba por baixar drasticamente a qualidade do mercado, impedindo firmas mais pequenas, formadas por designers mais experientes, de competir com grandes firmas que empregam grandes quantidades de mão-de-obra barata mas inexperiente.

Geralmente, a sobrevivência do jovem designer durante o “estágio” é assegurada pelos pais, acrescentando desta forma este custo ao das propinas e das outras despesas de educação, e contribuindo ainda mais para as dúvidas familiares em torno da utilidade da profissão do filho ou da filha – poder-se-ia dizer que o trabalho de muitas firmas de design é efectivamente subsidiado pelos pais dos seus trabalhadores. Em outras ocasiões, é o estado que subsidia a firma, ao abrigo de programas de apoio ao primeiro emprego, o que reduz ainda mais os riscos e custos da contratação. É claro que as firmas podem defender-se dizendo que não estão no negócio da caridade, mas, neste caso, o problema da justificação é afirmarem que estão no negócio da formação.

Uma das consequências do “estágio” é que, se as firmas oferecem formação em troca de mão-de-obra barata, a formação dada na escola precisa sempre de ser considerada insuficiente para poder manter os salários dos estagiários baixos ou nulos – na prática, os ateliers fazem concorrência às escolas, afirmando que a formação no “mundo real” só pode ser realizada num atelier, com trabalhos reais, fora do âmbito da escola. Portanto, uma das razões pelas quais as escolas não dão um acesso mais “realista” ao “mundo real” –a realização de trabalhos reais extra-curriculares remunerados ou não, por exemplo – é porque seria considerado competição pelos ateliers (já ouvi vários designers afirmarem que as escolas não deviam tirar trabalho aos nossos “colegas lá de fora que têm tanta dificuldade a encontrar trabalho”). No entanto, graças às novas leis de financiamento do ensino superior, as escolas não têm outro remédio senão avançar pelo mercado de trabalho adentro e começar a angariar clientes e projectos reais, o que vai mudar necessariamente o panorama dos estágios de design em Portugal, tornando-os mais dependentes de protocolos com as escolas, sujeitos a avaliação, etc.

Apesar de tudo, e para terminar com uma palavra de esperança, nem todos os estágios são maus. Geralmente os bons estágios são bem contratualizados – se não há dinheiro envolvido, isso é tornado bem claro desde o primeiro momento – e realizados sob supervisão competente e empenhada. Se o estágio também der oportunidade a uma progressão de carreira rápida e clara em direcção a um bom salário, ou – na ausência disso – a uma carta de recomendação que faça realmente diferença, melhor ainda.

(Naturalmente, é preciso lembrar que, se fixar um preço mínimo é difícil, a criação e divulgação de uma tabela de referência que permita aos designers conhecerem o estado actual do mercado seria bastante útil, contribuindo para evitar os “estágios” mal amanhados e as situações de concorrência pouco claras.)

Filed under: Ética, Burocracia, Cliente, Design, Economia, Ensino, Política

6 Responses

  1. Monika diz:

    Concordo plenamente com tudo o que foi escrito neste post. Como ex estagiária numa das mais reconhecidas agências do mercado, posso falar com conhecimento de causa, quando digo que os estágios estão cada vez mais em voga pelas razões mais erradas.
    Ou seja, os estagiários são carne para canhão, deixados à solta, sem acompanhamento e, se forem bons, serão chulados até ao tutano.
    Aprender com isso? Sim. Aprendi que estágios nunca mais!
    Aprendi mais uma ou outra coisa, sobre relacionamentos humanos, traições, falta de ética e tudo o que lhe está inerente, mas essas vou deixá-las para quem as pratica.

    • Miguel diz:

      O único problema dos estágios é que quando alguém se apercebe de que, regra geral, estes só servem os interesses dos patrões esclavagistas, passando o estagiário a rejeitar futuras “relações laborais baseadas na exploração”, vêm logo mais dois estagiários recém-licenciados para preencher “a vaga”. E os patrões regozijam-se.

  2. Ana Menta diz:

    Por causa deste tipo de coisas já fiz cerca de 4 estágios durante a minha vida e estou desempregada. Não caia na trapaça do estágio. Se o estagiário trabalha, tem um posto, dá lucro à empresa ajudando em tarefas que ninguém quer perder tempo a fazer, então o estagiário TEM de ser pago. Com o meu tempo livre decidi ler muito e entre outras coisas descobri esta: o trabalho tem de ser SEMPRE pago, porque alguém lucra com ele. Entretanto fiz 30 anos e vivo com os meus pais, porque nem eu nem o meu namorado temos dinheiro para ir viver juntos. E em breve foi-se a minha idade fértil. O meus estágios serviram-me para ganhar algum portfólio e experiência, mas em termos de sobrevivência e poupanças para o futuro, nada. E nem vamos pela meritocracia, porque os trabalhos que desenvolvi ganharam vários prémios tanto a nivel nacional como internacional.
    Há uma palavra para isto: exploração. A verdade é que tanto eu, como os meus colegas, somos tão qualificados e aptos que facilmente se prescinde de um e se mete outro a ‘ganhar experiência’ sem ter de se lhe pagar. E entretanto o patrão vai enchendo os bolsos com o nosso trabalho. Os prémios que ganhei e as exposições do meu trabalho estão em nome da minha ex-empresa, não no meu.
    Se há coisa para a qual me serviram os estágios foi para abrir os olhos, ter tempo livre quando caí no desemprego e ir ler Marx. E descobri que estou certíssima, os estágios não são um acidente e a exploração dos trabalhadores não é um acidente.
    Com outros desempregados fundamos um movimento cidadão, que, se concordarem com o manifesto, vos convido a assinar:

    http://www.movimentosememprego.info/subscrevermanifesto.htm

    Nota ao senhor Mário Moura que escreveu este texto: em 2006 eu pensava como o senhor e por isso fui fazendo noitadas e fins de semana a dar o meu melhor em estágios. Entretanto em 2012 olhando para trás, vejo o quão boa fui no meu trabalho e o quão pouco ganhei com isso… Espero que também tenha entretanto mudado de ideias.

  3. […] depois, em Agosto de 2006, escrevi o meu primeiro texto no Ressabiator dedicado ao estágio. Desde essa altura, a minha opinião não mudou muito. Na […]

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