The Ressabiator

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Se não podes pô-los a pensar uma vez, podes pô-los a pensar duas vezes

Qual é a maior coisa do Mundo?

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Que interessam as contradições dos cartazes quando o Governo privatiza os STCP, um serviço público, invocando o interesse público? Não é isto uma contradição? Dirá o Governo que o interesse público ficará muito melhor servido na mão de privados. Mas discordo – não apenas por todos os maus exemplos.

Um serviço público costumava ser barato por uma questão de escala – num país ou numa sociedade toda a gente o pagava através de impostos. Tanto nos transportes como na saúde, na educação ou na educação, as coisas eram possíveis porque toda a gente participava, quer quisesse quer não. Agora, pode-se escolher – a tal liberdade de escolha que aparece no programa do PSD – e o resultado é que cada vez mais gente não tem onde cair morta.

Mas não era disto que queria falar mas da escala. Até há pouco tempo, um país era a maior escala possível em termos económicos. Ultimamente, percebe-se que já não é assim. Basta fazer comparações simples de prioridades para o confirmar. Basta fazê-las a lápis de cera como num livro para crianças.

Por exemplo: no ínicio desta crise descobriu-se que havia uma série de bancos que eram “too big to fail” – com uma escala demasiado grande para serem deixados falir. Invocou-se que os países (o Estados) os teriam que resgatar. Até faz sentido, porque supostamente são maiores que os bancos. O que se descobriu é que não, não eram. Rapidamente, os países começaram a falir. E mesmo assim os bancos arranjaram maneira de continuar a falir. Um banco é maior que um país, que vários até.

Nos anos setenta, começou a falar-se de multinacionais, significando empresas que operavam em diversos países, mas seria talvez mais rigoroso dizer que se tratava de empresas que tinham várias vezes a dimensão económica de um país – é uma comparação habitual: diz-se que a Apple ou a Microsoft vale três ou quatro vezes o PIB deste ou daquele país. Os bancos são assim.

Chega-se ao ponto de pôr em causa o futuro do planeta, de o espremer mais um bocadinho em nome desta economia onde o sujeito maior são bancos. Põe-se em causa o aquecimento global, a saúde e bem estar de milhões em nome disto.

Seria tentador responder ao título deste texto dizendo que os bancos são a maior coisa do mundo mas não é verdade – a maior coisa dos bancos é o mundo.

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A Política está e sempre esteve no Papel de Parede – de William Morris à Biblioteca do Marquês

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E se o Jerónimo de Sousa fosse designer? Se a sua profissão fosse fazer mobília, ilustração, livros, padrões para papéis de parede? É mais do que provável que os comentadores do costume vissem nisso uma contradição. Diriam “esquerda caviar”, a caricatura habitual atirada a gente rica que trai a sua própria classe. Não interessa muito que boa parte dos designers seja pobre ou precária; é uma profissão conotada com riqueza e, pior ainda, superficialidade. Contudo, quando se formou a Segunda Internacional a 14 de Julho de 1889 em Paris, um dos signatários, representante do Socialismo em Inglaterra foi precisamente o designer William Morris, famoso pelos seus papéis de parede intrincados.

Sempre se acusou Morris de boas intenções e de incoerência: alguém que lutava pela igualdade mas fazia objectos artesanais que só gente muito rica podia comprar. Mas, como é habitual, quando se tiram estas conclusões apressadas, olha-se para etiqueta de preço e não se olha para o design em si. É preciso entender como se posicionava esse design na sua época. Se as ideias de Morris eram políticas é bastante provável que o seu design também o fosse. Hoje em dia, as características do que se considera ser um design político de esquerda – fotografia a preto e branco, montagens fotográficas, cores primárias em grandes superfícies, etc. – apareceram muito depois de Morris, já com o cinema, as vanguardas, e tudo o resto. Ou seja, não se sabe muito bem o que seria um design político no tempo de Morris.

Morris fundava as suas convicções políticas e estéticas em John Ruskin, que defendia um regresso aos processos comunitários da arquitectura medieval. Dizia Ruskin que a divisão do trabalho nas linhas de montagem da Revolução Industrial não dividia as tarefas mas fragmentava a própria alma humana, ao reduzir o trabalho ao fragmento de um gesto. Pelo contrário, na construção de uma catedral gótica, os trabalhadores participavam com a totalidade da sua vida. Era essa ideia de uma alma completa suportada por um trabalho completo que animava Morris.

Se olharmos para um livro, o primeiro objecto produzido por uma indústria mecânica, podemos ver as marcas de uma divisão de trabalho em todo o lado: cada caracter está separado dos outros; imagem e texto estão habitualmente separados sobre a página ou até em partes distintas do livro. Industrializar a escrita resultou numa modularização e especialização da produção – alguém faz os caracteres, alguém os compõe, alguém faz as imagens, etc. O resultado é a fragmentação de um processo que já foi contínuo.

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Nos livros de Morris, luta-se contra esta fragmentação produzindo uma página onde cada elemento está integrado num todo: margens, texto e ilustração fundem-se em intrincados padrões. A ideia dos padrões (ou designs) de Morris era precisamente essa. Seria esse o seu maior legado aos designers seguintes mesmo quando estes o renegavam (ou Morris os renegava a eles). A Arte Nova, por exemplo, usava temas vegetalistas quase abstractos para fazer o que Morris queria fazer: unir tudo a tudo numa linha contínua. A única grande inovação veio quando se percebeu que o espaço negativo podia fazer o mesmo que a decoração: com o uso de grelhas invisíveis podia-se dar unidade a tudo sem recorrer a folhinhas ou ervinhas.

Quando se fez a Exposição Universal de 1851 em Londres, os comentadores ingleses deploravam a falta de qualidade do design do seu país. Hbaitualmente quando se lê isso num livro de história não se percebe muito bem o que queriam dizer com isso. Só nos chegam chavões coados pelos nossos próprios preconceitos. Queixavam-se sobretudo de um estilo de decoração em trompe l’oeil, onde um papel de parede ou um tapete simulavam uma cena de caça ou o tecto de uma igreja barroca. Contra isso propunham uma estética de padrões bidimensionais que honravam a própria natureza das superfícies que ilustravam.

Tudo isto para voltar ao tema de ontem, o papel de parede, que ultimamente é usado sob a forma de impressões em vinil para decoração a torto e a direito. Trata-se de um uso político, como devia ser óbvio: acaba-se com uma biblioteca pública (ou um antigo negócio qualquer) e em vez de se assegurar condições para o manter, em vez de efectuar uma regulação efectiva, cumpre-se os mínimos colando um papel de parede a evocar as antigas funções. O mesmo se pode dizer de todos os cafés, hósteis e tuk tuks, decorados com poesia e azulejos.

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Vinil Autocolante

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Não sei se seguiram a saga da Biblioteca do Marquês, abandonada, devoluta, ocupada por activistas que fizeram dela uma biblioteca, emparedada, leiloada e finalmente, finalmente, finalmente, transformada em café, com esplanada, etc. Porque o Porto estava mesmo a precisar de outro café. E, como não podia deixar de ser, é um café decorado com impressões autocolantes de fotografias de livros, estantes e bibliotecas. É a isto que se reduz o design: prints em vinil do antigo negócio, antes daquilo se transformar num café.

Havia alternativa? Claro que sim. Podia ser um hotel ou um terminal de Tuk Tuks. Tirando isso, não estou a ver mais nada. É mesmo a isso que se reduz o design, as artes, a arquitectura e o resto: prints em vinil a disfarçar que tudo neste momento se reduz a tascas, tuk tuks e pensões.

Aproveitem enquanto o Hospital de Santo António não é um café com vinis impressos com macas e Raios-X. Olhem bem para o Aeroporto Sá Carneiro, futuro café, com aviões de vinil colados na maior esplanada da Península Ibérica.

Que querem? Dantes adequava-se forma a função, agora a forma é a função que tinha dantes, a de agora é um café.

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Programa e Bibliografia para Crítica de Design (Udpate)

Uma lista de leitura (em construção) para crítica de design. Está organizada por módulos temáticos. Alguns títulos são motes de discussão; outros, são maus exemplos; muitos são ferramentas. O desafio é conseguir uma coisa que encaixe em doze aulas e possa ser fisicamente lida de uma ponta à outra durante esse período de tempo.

1. Funções da Crítica do Design

Para que serve a crítica de design? Quem a exerce? Quem a consome? Nesta introdução, tratar-se-á o discurso crítico do design enquanto discussão pública sobre design: um discurso que precede, acompanha e continua a prática projectual. Tratar-se-á o discurso sobre design produzido internamente por designers e externamente por outros interessados. Argumentar-se-á que, se o design tem interesse para além do seu núcleo de praticantes, será necessariamente discutido por mais gente. Argumentar-se-á que a qualidade de uma discussão sobre design residirá antes de mais na qualidade dos argumentos usados. Apresentar-se-á uma definição operativa de crítica enquanto discurso externo e interno sobre design. Enquadrar-se-á tanto o designer como o crítico dentro do conceito Gramsciano de intelectual orgânico. Discutir-se-ão instâncias de anti-intelectualismo estrutural no design.

On Bullshit, Harry G. Frankfurt
On (Design) Bullshit, Michael Bierut
Raging Bull, Rick Poynor
The Prison Notebooks – The Intellectuals, Antonio Gramsci
Representations of the Intellectual, Edward W. Said (excertos)

2. História da Crítica em Geral (Literária, arte, design)

Uma introdução à crítica enquanto disciplina, através de uma história paralela entre a crítica literária e a crítica de arte. Apresentar-se-ão as diferentes funções que a crítica desempenhou, algumas das suas doutrinas e metodologias, bem como os formatos e contextos em que foi produzida. Esta história geral da crítica funcionará como um ponto de partida para estabelecer qual a especificidade de uma crítica do design.

An Introduction to Art Criticism: Histories, Strategies, Voices, Kerr Houston
The Function of Criticism, Terry Eagleton

3. Como se decide a história do design – Cânones

É habitual a crítica de design sustentar os seus argumentos na história da disciplina, deixando essa própria história fora do escrutínio crítico. Nesta secção, far-se-á uma análise crítica da história do design – quais as suas funções? Quem a produz e para quê? Com esse fim, analisar-se-á a discussão  em torno da existência ou não de um cânone dentro do design gráfico. Se tal como defendia Martha Scotford “a selecção crítica é o que faz um cânone”, quais os critérios que sustentam essa selecção? Analisar-se-ão os limites e omissões do cânone no que diz respeito geográficos, históricos, técnicos e de género.

Is There a Canon of Graphic Design History, Martha Scotford
Absolutely the “Worst”, Rick Poynor
The Silence of the Swastika: Erika Nooney

4. Política da Forma

A primeira tentação da crítica de design é limitar o seu alcance à avaliação das relações entre a forma e a função de um objecto – a sua adequação mútua, as suas dissonâncias. Contudo a separação entre forma e função é porosa. Nem a função é ausente de uma forma; nem a forma é puro jogo sensível. Cada uma é um artefacto cultural – o mesmo pode ser dito da oposição entre forma e conteúdo, como é evidente. Nesta secção tentar-se-á perceber a forma enquanto política, o estilo como substância, a superfície como identidade. Tentar-se-á averiguar como a própria separação entre forma e conteúdo ou função é ela mesma política. Elencar-se-ão diferentes maneiras como os binómios forma/função ou forma/conteúdo foram interpretados ao longo do tempo com consequências muito distintas. Argumentar-se-á que a forma não é um mero invólucro ou reflexo neutro para um conteúdo ou função políticos. O estilo ou a decoração não são acessórios mas recursos limitados disputados ou impostos. O modo como o design gere a relação forma/função ou forma/conteúdo é político, codificando sustentando diferentes regimes sociais, diferentes hierarquias, etc. Usar-se-á como base o conceito desenvolvido por Jacques Rancière de “partilha do sensível” para enquadrar a política das escolhas formais, bem como a sua separação da função /conteúdo.

The Crystal Goblet, Beatrice Ward
Graphics Incognito, Mark Owens
The Politics of aesthetics (excerto), Jacques Rancière
Art Under Plutocracy, William Morris
Ornamento e Crime, Tipógrafos: Adolf Loos
O Autor como Produtor, Walter Benjamin

“Good Design is Goodwill”, Paul Rand
The Form of The Book – An Essay On The Morality of Good Design, Jan Tschichold

Jean Baudrillard, O Sistema dos Objectos (excerto)
Subcultures, Dick Hebdige (excerto)

5. Política do Design

Sustentando-se nas reflexões sobre a forma da secção anterior, tentar-se-á averiguar o que poderá ser a própria natureza política do design, como este trata a política enquanto tema e como é ele próprio político.

No Logo, Naomi Klein. (excertos)
Art Under Plutocracy, William Morris
A Obra de Arte Na era da Sua Reprodução Técnica, O Autor como Produtor, Walter Benjamin
Ways of Seeing, John Berger
Isto Não é Um Cachimbo, Michel Foucault.

6. Autoria e Design

O Designer Como Autor, Michael Rock.
O Designer como Produtor, Ellen Lupton
O Designer como Empreendedor, Steven Heller

A Morte do Autor, Roland Barthes
O Que é um Autor? Michel Foucault
Platão, Ion (excerto)

7. Geografia, Identidade e Design

Walter Ong, Orality and Literacy (Excerto)
Edward W. Said, Orientalismo; Cultura e Imperialismo (excerto)
Benedict Anderson, Comunidades Imaginadas (excerto)

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O intelectual de direita revisitado

Há dez anos, quando aprendia a ter um blog, tive a sorte de encontrar o livro Representações do Intelectual, de Edward W. Said. Li-o de uma assentada, numa tarde em Lisboa a descansar das idas e voltas tradicionalmente vácuas Experimenta 2005. Said defendia o intelectual como crítico público, sempre atento e disposto a denunciar injustiças, mesmo arriscando a sua reputação.

Na altura, a própria ideia de intelectual público era contra-corrente. Gabavam-se os peritos, quem falava apenas do que sabia, o que se traduzia em insiders, políticos em pousio, economistas representantes do que na altura ainda não se chamava neoliberalismo. Assumir-se como intelectual público não estava na moda. Multiplicavam-se os artigos a anunciar ou a morte do conceito.

Entretanto, veio a crise. Os “peritos”, falhadas as suas ideias enquanto hipóteses científicas, redescobriram a política e a discussão pública. Já reconhecem o caracter ideológico do que defendiam, mas apenas para assegurar que já não são ideias inevitáveis pelo seu valor científico mas pelo seu valor político: já não se defende o neoliberalismo como processo que assegura um certo resultado dentro do campo económico e social mas como um requisito a cumprir para agradar aos poderes dominantes.

Foi uma mudança de vulto, que se traduziu apenas em artigos que garantiam que os intelectuais de direita tinham saído do armário – por medo de falarem em público num campo dominado pela esquerda, uma asserção justamente denunciada como falsa. Na verdade, o que aconteceu foi uma “politização” estratégica do discurso de direita, uma retirada de um poleiro apolítico, onde o seu discurso representava a um tempo um senso comum e uma sabedoria técnica. A direita deixava de invocar a certeza “científica” do neoliberalismo para dizer que era apenas uma doutrina política entre outras, uma opinião entre outras. O efeito é o de relativizar os seus próprios erros, tentando relativizar no processo ideias alternativas ou opostas.

Obviamente, não se deve esquecer que essas ideias nos foram apresentadas como inevitabilidades técnicas e científicas, e que, enquanto tal, falharam. Dizer que são apenas opinião ou apenas política, não as iliba desse falhanço. Há liberdade de opinião, claro. Pode defender-se o que se quiser. Mas isso não garante um estatuto de verdade ao que é defendido. Desconfio que o dilúvio de mentiras óbvias que o Governo e os seus apoiantes têm debitado não é apenas utilitário – não serve apenas para vencer eleições – mas deriva também de terem deixado de acreditar no que defendiam até há pouco tempo.

O resultado desta “descida” ao plano da política tem sido assim uma degradação acelerada desse mesmo plano.

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A propósito do uso industrializado de mentiras óbvias por este Governo

Há um conto chamado “O Alfaiate Novo do Rei” onde um charlatão se faz contratar por um monarca vaidoso para lhe conceber um novo fato. O costureiro consegue convencer a corte inteira que estã a usar um tecido tão fino, tão delicado que é invísivel aos olhos menos sensíveis, menos habituados ao luxo. A corte inteira e o próprio Rei, não querendo dar parte de fracos, convenceram-se que conseguiam ver o tecido inexistente. Só quando o Rei desfila perante o povo é que começam os risos e os gritos de “O Rei vai nu.”

Parábola encantadora sobre a vaidade que, infelizmente, não leva em conta algumas questões básicas sobre a natureza  do Poder. A saber: o Rei pode ir como lhe apetecer; afinal, é o Rei. Quem disser o contrário, apanha no pêlo. Aliás, até pode funcionar como um teste de fé no soberano: exigir dos subtis que acreditem em meia dúzia de coisas impossíveis ou simplesmente estúpidas. Veja-se com os candidatos republicanos precisam de demonstrar que não acreditam no aquecimento global, na evolução, etc.

Por cá, temos gente como Bruno Maçães, que parece acreditar que a relação entre argumentos e factos assenta simplesmente na força de vontade. É uma ostentação pura e simples de poder.

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Will Rogers, John Ford e Benard da Costa: Arte, Política e Religião

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Em Férias, tenho-me dedicado à Grande Depressão, na literatura, nos filmes, na crítica. Ouço versões de música sindicalista. Ando à roda de Steinbeck, Ford ou os dois juntos. Acabo por ser puxado em direcção a Will Rogers, de quem pouco se fala hoje em dia. Era talvez o Jon Stewart da sua época, meio Cherokee, índio de Circo, colunista e viajante profissional. Se foi esquecido e relativizado foi pelas suas opções públicas políticas, por apoiar Roosevelt, entre outras coisas. Benard da Costa cede-lhe rancorosamente três páginas no catálogo que dedicou a John Ford, no dicionário intitulado “Gente de Ford”, mais para explicar porque não gosta dele do que para o glorificar. Mete-o lá porque Ford gostava de Rogers, embora o director da Cinemateca não perceba bem porquê. Nem esconde o seu desprezo pelo comediante desde a primeira linha. Insiste que só era conhecido por razões que não tinham nada que ver com o cinema. Compara-o a Dale Carnegie. Chama-lhe pateta:

“Will Rogers é, na história de Hollywood, um caso único. Porque se dela é inseparável, o cinema foi só um dos «media», a certa altura privilegiado, para servir uma popularidade imensa que nada tem que ver com esta arte dita sétima. O fenómeno Rogers só podia acontecer na América. Quem se lembra de Dale Carnegie e daqueles livros (com tiragens de milhões) chamados Como Fazer Amigos, Como Influenciar Pessoas, A Arte de Ser Chefe ou coisas parecidas, cheios de lugares comuns e das mais generalizadas patetices, pode ter uma aproximação ao «showman» Rogers, que, nos anos 10, 20 e 30, percorreu os States a dizer banalidades congéneres e a arrastar multidões atrás dele, a ponto de se tornar num trunfo capital, não só no mundo do espectáculo, como no mundo da política (em 32, o seu apoio a Roosevelt parece ter sido capital para a eleição do Presidente). Chegaram a chamar escritor e filósofo ao homem que, em 26, declarava ao «Picture-goer»: «Sim senhor, sou escritor, e sou escritor há muito tempo. Não escrevo do bom, mas escrevo muito («I don’t write good, but I wrote a lot»).”

A antipatia é política, embora Benard da Costa a confunda (como seria de esperar) com uma questão de Gosto, com a crença na pureza religiosa da arte e sobretudo do cinema. Para ele, o pateta Rogers, colocado ao mesmo nível que uma criança e um cão, acaba por só fazer sentido dentro do populismo Rooseveltiano. Só se admite a política dentro da arte como uma interferência; nunca como algo central no cinema e na arte da época:

os seus filmes têm sido pouco repostos, de modo a tornar-se difícil saber quem tem razão: se os seus detractores, que falam dos «três monstros» dos «thirties»: um pateta (Rogers), uma criança (Shirley) e um cão (Rin-Tin-Tin); se os que vêem na sua obra dessa década, e sobretudo nos filmes de Ford, o prenúncio genial dos Capra e Fords futuros, emblema máximo desses anos. Mas mesmo um detractor como Thomson lhe chama «the most reflective and influential of American Film Stars», o «nobre selvagem» que encarnou como ninguém o populismo rooseveltiano, ao tempo em que uns acusavam o presidente do «New Deal» de esquerdismo e outros de fascismo. Rogers talvez não tenha sido a América, no sentido da citação inicial, mas foi certamente uma das imagens mais espontâneas dela.

A mesma incompreensão da arte política aparece quando no mesmo dicionário fala de Fonda:

Em dois filmes — e em dois filmes de Ford — Young Mr. Lincoln e The Grapes of Wrath, Fonda foi o olhar da América, ou duma certa América: a América rooseveltiana que, nos tempos de Hitler, Mussolini, Estaline e da mais terrível das guerras, propunha ao vasto mundo os valores liberais do credo de Gettysburgh. 40 anos depois, é fácil distanciarmo-nos do «populismo religioso» que impregna esses filmes ou situá-los nos limites da ideologia que os enforma. Mas essa distância só é possível «à distância», ou seja quando não estamos diante deles. Porque, quando vemos o luto do «young Lincoln» ou a saga de Tom Joad, reencontramos as raízes perdidas de indomáveis convicções. Por isso, Ford tinha razão quando disse que As Vinhas da Ira eram uma «timely story». «Timely story» do «people that live» da oração de Darwell. Mas «timely story» do herói em que todas essas coisas se personificaram: Henry Fonda.

Benard só consegue recuperar o cinema de um tempo muito particular e de um povo convertendo-o para a teologia que conhece, a da arte e da vida pública enquanto religião, e a do herói enquanto Santo. É o que faz com Fonda e é o que faz com Rogers. Se Fonda é o sindicalista que escolhe o martírio, Rogers é o charlatão que vende a banha da cobra usando os mesmos gestos e tiques do pregador itinerante, redimido a custo pelo toque de Ford:

O «Pocahonte Remedy» que vende no Steamboat Round the Bend é não só a mezinha sagrada, corno a remissão dos pecados, o equivalente do «Repent, ya sinners» que o Novo Moisés brada nesse filme. E, pelo menos com Ford, Rogers é a imagem duma desarmante confiança na natural bondade do homem.

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Mário Moura

Mário Moura, blogger, conferencista, crítico.

Autor do livro O Design que o Design Não Vê (Orfeu Negro, 2018). Parte dos seus textos foram recolhidos no livro Design em Tempos de Crise (Braço de Ferro, 2009). A sua tese de doutoramento trata da autoria no design.

Dá aulas na FBAUP (História e Crítica do Design Tipografia, Edição) e pertence ao Centro de Investigação i2ads.

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