The Ressabiator

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Se não podes pô-los a pensar uma vez, podes pô-los a pensar duas vezes

Juventude em Marcha

Confesso com um niquinho de embaraço que vou seguindo fielmente as reviravoltas da Gossip Girl, nem sei bem porquê. Os enredos são repetitivos. Os personagens têm a memória temperamental de um cidadão de Patópolis. De um episódio para o outro, podem esquecer uma tentativa de violação, agressão física ou difamação e ir alegremente às compras de braço dado com o antigo inimigo. De vez em quando alguém se lembra – por conveniência do enredo – que é adversário mortal de alguém com quem esteve a tomar café calmamente na semana anterior.

Dentro do pequeno elenco já praticamente toda a gente dormiu com toda a gente, embora ainda haja um certo tabu no que diz respeito a relações entre adultos e adolescentes. Já houve relações com diferenças de idade amplas, mas sempre entre um dos personagens principais e um actor convidado facilmente descartável ao fim de um ou dois episódios.

Mas porquê falar da Gossip Girl num blogue sobre design? Porque, naquele pequeno universo paralelo com regras sociais bem diferentes do nosso, é comum um jovem adulto, por vezes até um adolescente, desempenhar tarefas de muita responsabilidade: aos vinte anos, um jovem dandy dirige com tiques de perversão maquiavélica um hotel ou um grupo empresarial, dependendo do episódio; outro, ainda aluno de liceu, já tinha publicado um conto na selectiva revista New Yorker; a irmã aos quinze já andava na alta roda do design de moda; uma amiga alternava entre a má vida e uma carreira promissora como relações públicas.

Sempre que algum dos jovens deita pela janela toda a confiança que foi depositada nele, os adultos estão sempre prontos a delegar responsabilidades ainda maiores sobre ele, seja ele filho, aluno ou empregado. De todo o irrealismo do universo da Gossip Girl, este é talvez o mais inverosímil. Em ambientes com alguma meritocracia, ainda é possível imaginar que alguém aos vinte e poucos pode ser um bilionário (tal como Mark Zuckerberg), mas nos dias que correm a juventude não vale de muito, em particular nos países do Sul da Europa como Portugal onde é cada vez mais difícil a alguém com menos de trinta anos penetrar no mercado de trabalho.

Vão-se fazendo estágios, concorrendo a bolsas, equilibrando o orçamento com a ajuda dos pais. Emigra-se finalmente, primeiro para uma cidade maior, depois para países onde a competência vale mais do que a idade. Se muita gente vê tudo isto como um desperdício trágico, outros tantos vêem isto como um processo natural. Acreditam que os jovens não estão preparados, que ainda não têm maturidade; que a formação superior não chega e precisa de ser colmatada com outros tantos anos de estágio.

Mesmo as universidades vão-se encaixando neste esquema, assumindo o papel de antecâmaras para um estágio e inculcando nos alunos a ideia de que não estão preparados, que ainda não têm maturidade, etc. Há uma infantilização sempre crescente do estudante universitário português. A redução dos cursos para três anos ainda contribui mais para isso, fornecendo amplos argumentos para demonstrar que os mais jovens não estão preparados para um trabalho digno.

O resultado? Há uns tempos, o sócio de uma firma de design com algum nome comentou-me que já ninguém lhes aparecia no estúdio a pedir um emprego. A nova geração já só pede estágios – que é como quem diz: precisam de alguém disposto a pagar para trabalhar?

Porém, a falta de maturidade desta geração não me parece maior que a das anteriores. Vejo muita gente disposta a fazer com qualidade o trabalho em que acredita, sem qualquer tipo de salário, em condições precárias, longe da família e amigos. Como exemplo posso dar um caso que me é próximo: a minha própria irmã mais nova que, depois de tirar um mestrado em jornalismo em Barcelona, estagiou em jornais nacionais espanhóis publicando regularmente trabalhos de investigação sobre corrupção, droga e emigração, cobrindo estes assuntos inevitavelmente perigosos sem receber um tostão. Neste momento, está a estagiar em Israel ao abrigo do programa Inov-Art, e vai publicando regularmente notícias, mais uma vez sem outro pagamento que não a bolsa de estágio – o que já não é mau, mas que mais uma vez não chega a ter a mesma legitimidade que um emprego a sério. E é, finalmente, esta responsabilidade sem legitimidade ou reconhecimento de mérito que vai curvando as costas das gerações mais novas.

Filed under: Crítica, Cultura, Design, Política

11 Responses

  1. joana r. diz:

    O pior é quando aparecemos a pedir trabalho, dão-nos estágios ou não nos dão nada, porque o próximo aceitará trabalhar de borla.

    acordei a pensar nisto, esta manhã e a pensar que temos de fazer uma revolução. a minha geração, se não se une, não tem qualquer hipótese.

    Obrigada por se preocupar.

    • Victor Almeida diz:

      A REVOLUÇÃO é uma hipótese sempre presente, mas já pensou em PEQUENAS REVOLUÇÕES que evidenciem a sua indignação?
      Andamos todos à espera da tal medida do Governo, disto e daquilo, esquecendo-nos que nos movimentamos como peixes na água em matéria de comunicação. De que esperamos para COMUNICAR? Não leio MANIFESTOS, nem vejo revistas ou fanzines da malta mais nova. Não vejo grupos de acção, nem sinto que o mal-estar de que fala seja relevante para a maioria dos designers desempregados. Se assim fosse, organizavam-se e lutavam pelos interesses que são seus e de todos.
      Porque não se agenda um congresso da classe para debater estes e outros assuntos? Porque não colocamos novamente o design na agenda do Governo? Porque não se avalia o impacto da licenciatura de 3 anos?
      Por onde anda o Observatório do Design? Etc., etc..

  2. Será também preciso um dos nossos licenciados incendiar-se para haver reacção por parte da população?! Faço referência aos últimos acontecimentos que desencadearam a actual revolução na Tunísia: Um jovem altamente formado pega-se fogo quando a policia retira-lhe o seu único meio de sustento, a sua banca de frutos e legumes. Se um pais como a Tunísia sem democracia até hoje (logo veremos), sem emprego para o seus jovens formados é capaz de um tal despertar de consciências, o que nos falta?! Se é preciso esperar pelos trinta para ser socialmente aceite e que aos 40 já nenhuma empresa nos quer, está alguma coisa mesmo errada… Será, como disse o Mário e muito bem, pelo governo ser simplesmente um mero filtro dos interesses capitalistas das multinacionais, que toda a sociedade acaba por reflectir os seus esquemas unicamente apontados para o lucro, descartando todo e qualquer elemento que não se enquadra na sua lógica, (como um estagiário por exemplo?). E capaz ser… Pelo menos ficam ai o meu desabafo.

    • realvst diz:

      “Se é preciso esperar pelos trinta para ser socialmente aceite e que aos 40 já nenhuma empresa nos quer, está alguma coisa mesmo errada…”

      O que é uma ratoeira das grossas… Lembro-me dos meus primeiros meses à procura de trabalho, logo depois que concluí a licenciatura. A resposta era sempre a mesma “Não tens a idade nem a experiência suficientes”. Mas se eu, agora com 30 anos, vou a uma entrevista de emprego, a resposta já é ao contrário: “Estamos à procura de novas mentalidades, de gente jovem e recém-licenciada”. Bem, ao que parece, são tudo desculpas.

  3. realvst diz:

    Bom tópico! Pessoalmente, já passei imensas vezes por essa situação. Cheguei a trabalhar para 2 ou 3 empresas com grandes clientes, elaborando marcas para empresas de grande relevo nacional e internacional… a custo zero. Até que um dia me ofereceram trabalho a recibos verdes. Disseram-me que era como se eu fosse “um trabalhador independente, como se fosse empresário em nome individual”. E eu aceitei logo. Só que o que eles não estavam à espera é que eu fosse levar essas palavras mesmo à letra. E comecei a angariar os meus próprios clientes e a conseguir ganhar mais em casa do que propriamente na empresa. Um dia despediram-me e admiraram-se do facto de eu nem sequer pestanejar quando me mandaram embora. “Rui, a empresa fechará brevemente e teremos de te despedir antecipadamente. Não te sentes preocupado em relação ao teu futuro?”, ao que eu respondi “não estou nada preocupado. tenho ganho o triplo do que ganho aqui na empresa só a trabalhar em casa, por isso…”
    E cá estou eu, na minha nova secretária, com um pc novinho em folha (prenda de natal que resolvi oferecer a mim mesmo), e com a cama mesmo ao meu lado. Posso por a música nas alturas, fumar à vontade, sair para tomar café, ver tv enquanto trabalho… São tudo regalias! 😉

    • Danae diz:

      realvst, não é assim tão linear 🙂

      Realmente á regalias para quem trabalha em casa, mas depois também há outras responsabilidades e outras desvantagens. Mas ainda bem que a tua situação é um caso de sucesso.

      Em relação ao tema: Estou perto de finalizar o estágio e ainda nãoi recebi nenhum feedback se vou ficar na empresa ou não, por isso já comecei a ver anúncio de emprego.

      Já agora Mário o seu amigo está a pensar contratar alguém? É que eu QUERO UM EMPREGO e cerca de 90% do anúncios são estagios profissionais e estágios curriculares. 🙂

      Não é dificil encontrar quem queira um emprego a oferta é não é suficiente. Qual a razão deste desajuste? Não sei…Só sei que cada vez mais me parece que a solução seja eu tornar-me Olivia-Costureira e Olivia-Patroa.

  4. Boas noticias afinal existem! Penso é que pelo menos o trabalho de assalariado não será nos próximos tempos garantia de protecção e de progresso social. Tudo está a tender para a desmaterialização, a informação, as amizades, o trabalho logicamente havia de seguir o passo. Vejo a minha volta que o trabalhador independente tem hipóteses de sobrevivência, a custo de alguma coragem e noções de gestão. Então parece que todo e qualquer ser humano está destinado a tornar-se num marca.

  5. Sempre que posso decidir, em vez de me basear na meritocracia, costumo optar pelo voto de confiança. Tem corrido mal tantas vezes quanto tem corrido bem. Em Portugal as pessoas quando chegam aos 60 anos queixam-se que ninguém lhes liga. Mas não se lembram que desde que fizeram 45 anos que se esqueceram da geração que lhes poderia garantir a atenção necessária (lembram-se da família e mais nada). Se ao menos os gestores e políticos não tivessem garantidas as reformas de acordo com os salários que conseguiram definir para si enquanto trabalhavam, talvez a nossa geração um dia se pudesse lembrar deles com admiração, sem ter de lhes cortar as pensões.

  6. A minha história é semelhante à do meu colega anterior, depois de 2 anos a falsos recibos, a estagiar, a trabalhar sem receber (quando não era isso o combinado), decidi que preferia trabalhar num shopping ou numa loja e por acaso apareceu-me o meu actual cliente que chamou-me para ser livreiro e acabei por sair designer freelancer.

    Ganho o mesmo que nalgumas empresas onde trabalhei (com horas extraordinárias e directas sem sequer obrigados) e estou no meu escritório ainda meio em obras sossegadinho a ler um post do Mário às 5 da tarde.

    O próximo passo é começar o meu negócio a produzir design em vez de o vender como serviço. Os meus ex-patrões talvez se safem mas cheira-me que acabarão por se ressentir…

  7. Jorge Castro diz:

    No meio de todas estas verdades como punhos, interessa saber que a sacrossanta desregulamentação do mercado de trabalho – que tem lugar debaixo dos nossos narizes complacentes – e que é a causadora de todas estas queixas das novas gerações relativamente ao mercado do trabalho, mais não é do que uma abusiva, impune e descarada violação da legislação de trabalho existente.

    Ora, em qualquer país dito civilizado e de direito – o que até poderá parecer redundante – muita da ética passa pelo bom cumprimento da lei e não ao seu arrepio.

    O que temos vindo a verificar, com a total cumplicidade dos sucessivos governos do centrão, é que os «empresários» a que temos direito torpedeiam a legislação laboral… e nada se passa! Depois, dizem que são as novas regras do indistinguível «mercado»…

    Ficarão todos felizes apenas e quando todos formos «chineses»… mas rurais, que os urbanos vão começando já a descobrir e a desenvolver os apetites da classe média.

    Resta-me acrescentar que falo na qualidade de pai e que tenho um filho altamente qualificado, em termos de habilitações e de humanidade, a esgravatar há vários anos em busca do seu futuro.

    Mas, enquanto eu possa, não há-de ir para um supermercado exercer as suas competências como caixa ou carregador de fardos. Não porque menospreze o trabalho braçal, mas porque me enoja este inqualificável desperdício de competências e de habilitações – que, afinal, todos pagamos.

  8. […] pelo jornalismo e ter estagiado uns meses em Israel, agora é lá repórter  – já tinha falado aqui dela a propósito das vidas absurdas, mal pagas e potencialmente perigosas dos […]

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