The Ressabiator

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Se não podes pô-los a pensar uma vez, podes pô-los a pensar duas vezes

19 anos

Faz hoje 19 anos que comecei o blogue The Ressabiator. Ainda o uso, embora prefira publicar na monumentanea.com ou no unseenby.design.

Durante algum tempo, escrevi muito no facebook. 2022 encarregou-se de me tirar a vontade. A reacção da esquerda à invasão russa da Ucrânia foi o motivo. Do lado do PCP e afins, foi a mentira e a dissimulação reiteradas; do restante, a falta de vontade de fazer um exame de consciência sistemático sobre toda a xenofobia, racismo, apologia de crimes contra a humanidade, teorias de conspiração, etc. Custa-me até levar a sério produção científica sobre a sociedade portuguesa que não se debruce sobre isto.

Na minha área, o caso da História do Design Gráfico em Portugal teve um efeito semelhante. A incapacidade do design assumir uma postura pública e institucional sobre um problema gravíssimo, que sucede à vista de todos e que qualquer um pode verificar com os seus próprios olhos, é grave em si mesma.

Encerro a minha segunda década de escrita sobre design com a sensação que pouco ou nada mudou desde que comecei em 2004. Apesar de nunca se ter escrito tanto dentro da área, permanece a incapacidade de o fazer perante um público mais alargado. A área fechou-se e ensimesmou-se.

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Uma História grave (3)

O Público divulgou finalmente um esclarecimento na questão da História do Design Gráfico em Portugal. Publicou-o ontem, 24 de Dezembro – talvez o pior dia do ano para prestar atenção a notícias. Como é apenas um esclarecimento, só é consultável na versão em papel, no pdf, e no mail enviado aos leitores que compraram a colecção completa. Não há link disponível. Não é sequer possível encontrá-lo num search da internet.

Deixamos aqui registada a nossa perplexidade com a forma como o Público demorou semanas a tomar uma decisão neste caso, apenas para a publicar deste modo. O seu próprio código deontológico prevê uma resposta em 96 horas. Quanto ao conteúdo do esclarecimento, em breve publicaremos um comentário.

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Uma História grave (2)

Ainda sobre o assunto do post anterior:

Publico aqui o fim da passagem de Augusto Santos Silva transcrita sem atribuição nas páginas 37 e 38 do primeiro volume História do Design Gráfico em Portugal (HDGP).

No fim do trecho original, Santos Silva cita Orlando Ribeiro (imagem 1). Na HDGP, a citação de Ribeiro é referenciada na margem, logo que surge no texto principal (imagem 2). Augusto Santos Silva não é mencionado.

Se Ribeiro é identificado de imediato, não há razão verosímil para que Augusto Santos Silva venha apenas a ser identificado num nono volume, editado dois meses depois. Qualquer leitor assumirá que as citações são identificadas na altura em que são feitas.

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Uma história grave

No começo de Novembro, a minha colega Maria José Goulão, professora de História de Arte na FBAUP contactou-me porque descobriu erros graves nos primeiros volumes da História do Design em Portugal, de José Bártolo. É uma obra em dez volumes editada pela Esad de Matosinhos e distribuída com a chancela do Público. Havia gralhas, erros de identificação de obras e três instâncias de citações mal ou não atribuídas de todo, que podem configurar plágio. Enviou uma lista para o Público. Prontificou-se a elaborar uma recensão crítica. A direcção prometeu investigar.

Ela emprestou-me os seus exemplares anotados (eu comprei a colecção completa e na altura ainda estava à espera que me enviassem os primeiros cinco livros). Descobri, recorrendo ao google, mais cinco citações problemáticas. Uma delas ocupava mais que uma página. Reproduzo aqui, para exemplo, uma passagem copiada tal e qual, sem referência, de uma obra de Augusto Santos Silva.

A Maria José Goulão enviou esta nova listagem ao Público. No dia seguinte, a colecção foi retirada da loja online. Desde então, já não foram lançados novos volumes com o Público ao Sábado. O jornal não deu até agora justificações públicas. Indicou-nos que os serviços legais do Público estão a tratar do assunto.

Não vou especular sobre o processo ou os motivos que levaram a isto tudo. Tal deverá ser apurado em inquérito posterior. Os problemas são inegáveis. Qualquer pessoas munida de uma cópia dos livros e de internet os pode confirmar. Importa antes de mais avisar quem tenha comprado ou consulte a obra. O seu uso como referência parece-me irremediavelmente comprometido.

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Documentos de Barbárie

A indignação obscurece um facto: a posição da esquerda tankie tipo PCP não é irracional, nem no sentido tático imediato, nem acima de tudo nos seus princípios.

Não é uma aberração, uma alucinação ou uma maluqueira – é errada, a nível ético, tático, político, etc. Mas é racional.

Para o perceber é preciso regressar a Adorno ou a Benjamin: cada documento da civilização ou do progresso é, também ele, um documento de barbárie.

Georges Didi-Huberman resume bem: «quanto mais os vossos contemporâneos reclamarem para si, unilateralmente, o progresso, a razão, a “tecnologia”, maior será o poder social da desrazão, do pensamento mágico, senão mesmo da barbárie.»

O pensamento mágico não são só as teorias de conspiração mas a crença de que a esquerda estava isenta. Podia-se «safar», reclamando apenas para si o progresso, a razão, a «tecnologia».

A Ucrânia fez desabar tudo isso. Nessa esquerda só sobraram os que, por mecanismos muito racionais e complicados, recusam ver algumas valas comuns.

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Monstros cegos

Quando no fim da adolescência, ainda em Vila Real, decidi ser cinéfilo, comecei a cumprir com trepidação certas normas. Ao contrário dos «civis», comprava o meu bilhete para as filas da frente, ao centro, e ficava todo a espumar quando outro se instalava à minha frente. Quando havia intervalo, ignorava-os, ficando sentado. Tudo aquilo apontava para um ritual, uma fé, no filme como algo não-mediado, sem plateia, sem intervalos, só um ecrã a encher-nos os sentidos no limite do confortável.

Agora, percebo essa cinefilia como um privilégio. Ou melhor, como a aspiração a um. Em Vila Real, a cópia do filme chegava-nos depois do filme ter saído de exibição no Porto, ficava connosco uns dias seguindo depois para outras paragens. Já vinha com riscos, com as marcas de alguém a ter visto antes de nós. Ser cinéfilo era reduzir ao mínimo a distância àquelas imagens, àquelas luzes e sombras, produzidas por uma indústria distante.

Agora, sou pai de um bebé no meio de uma pandemia e o modo como vejo os filmes é aos dez, vinte minutos por dia, no ecrã de um computador.

Ando há uns dias (semanas?) a ver Passing de Rebecca Hall e a gostar. O livro de Nella Larsen de onde foi adaptado é uma obra prima sobre o processo social que lhe dá o nome – “passing” – através do qual uma pessoa racializada, por vezes mesmo famílias inteiras, se decidia a, clandestinamente, passar por branca. Passavam à clandestinidade, usando a expressão portuguesa, à vista de todos. Mudavam de terras, de comunidades, de amigos, cortando drasticamente com o passado, num processo de exílio.

A um branco, só mal se pode imaginar o que será isso. Talvez a literatura ou a arte nos ajudem a perceber. Por exemplo, estas vidas serão talvez semelhantes às do Conde de Montecristo, e a sua passagem do degredo ao privilégio. Mas mais uma vez não será aqui que encontramos uma consciência branca do que é o Passing. Alexandre Dumas era neto de escravos.

Há outras ficções de vingança associadas ao passing, como o Irei Cuspir-vos nos Túmulos, de Boris Vian, sobre um negro de pele clara que se faz passar por branco para vingar o linchamento do irmão.

Tenho andado a ler a crítica portuguesa de cinema a Passing e, embora elogiosas, penso que falham a dimensão fundamental do filme – a última que li foi a de Luís Miguel Oliveira no Público. Uma dimensão que antecede a do cinema e a da cinefília e que tem que ver com a visualidade.

Passing é um filme sobre ver e ser visto. Tal se percebe pelos planos da personagem principal a olhar o mundo através de um véu. Penso que era WJT Mitchell que lembrava essa ideia, não sei se originária em DuBois, que a raça era um véu, um ecrã que esconde mas também que funciona como um filtro que revela.

É um filme sobre os olhares e onde isso se vê melhor é talvez no uso do preto e branco. O que é radical no filme é colocar-nos não na posição de um negro, mas na posição de um branco – de uma daquelas pessoas que se recusam a ver cores. Retirando-nos as cores, em vez de atingirmos a tão propalada utopia pós-racial, o que obtemos é uma tensão permanente que nos põe a policiar quem parece ser e quem não parece ser. E a empatizar finalmente com personagens que, tal como num filme de terror, estão escondidas, sem respirar, enquanto monstros cegos por elas resvalam, farejando.

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O designer como forma e novo instagram

Tenho andado a escrever artigos em inglês na minha revista/blog unseenby.design.

Hoje, publiquei um sobre o designer como forma, usando o caso Ernst Bettler como mote.

Também podem seguir o meu novo instagram. Procure

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Esquerdotropicalismo

Penso que a esquerda portuguesa se tornou bastante mais conservadora nos últimos anos. A conversa da «ditadura do politicamente correcto» é talvez o maior indício.

Apanha-se gente relativamente nova a embarcar nisso mas também «veteranos» da luta anti-fascista de todos os quadrantes. É algo que une o Ricardo Araújo Pereira, o Mário de Carvalho e até gente na esquerda da direita que também foi anti-fascista como o Pacheco Pereira.

Essa conversa tem variações. A versão pura, alguém queixar-se do politicamente correcto, é também a mais amorfa, uma coisa vaga que se atira a tudo sem ser preciso especificar — a bom entendedor.

Depois, há versões mais afinadas que, até evitam a expressão «politicamente correcto» mas cujo efeito é o mesmo. Fala-se dos excessos do #metoo, do Black Lives Matter ou do interseccionalismo — excessos que sucedem invariavelmente quando as bombas caem demasiado perto, quando é um ícone qualquer mais ou menos associado à esquerda que foi acusado de violação, ou de homofobia ou de racismo.

Toda a história da esquerda, remota ou recente, é um campo minado, e o que se escolheu fazer aqui em Portugal é ficar o mais calado possível sobre isso. Instalou-se uma espécie de lusotropicalismo invertido, que corresponde àquilo que é seguro e mais ou menos consensual discutir em termos de anti-racismo, lgbtq+ e feminismo.

Por um lado, há pessoas que discutem e investigam estes assuntos com sentido de causa, por outro há muita gente que os discute ou tolera apenas como uma forma de esquerdotropicalismo, porque acredita ou quer acreditar que a esquerda teve sempre, por inerência, posições e relações positivas com minorias racializadas, lgbtq+ e mulheres. Até se admitem «excessos» mas são tidos como «distorções», o que é um modo fácil de não pensar demasiado neles.

O que fica para discutir é muito pouco. Em geral, «casos» que se querem o mais possível isolados, e se possível no campo do «inimigo». Daí que se acabe a discutir estátuas, nomes de ruas, vocabulário, e se entre a medo em coisas como a homofobia entre a esquerda reduzindo-a a «casos», como por exemplo o de Júlio Fogaça. Seria bastante mais interessante e produtivo ver o que é sistémico.

Recentemente, li trabalhos sobre anti-semitismo sistémico dentro da esquerda que recusam a ideia do caso isolado, vêem tendências e as ligam entre si que são um exemplo do que pode ser feito. Há também muito trabalho feito sobre a existência de racismos e lgbtfobias em movimentos laborais e progressistas nos EUA (é ver a obra de David Roediger).

Penso que não se faz algo semelhante aqui em Portugal porque há um consenso «produtivo» que une largos sectores da esquerda e da direita, e que vê tudo o que é anti-racismo, activismo lgbtq+ e novos feminismos como algo a erradicar ou, numa versão mais soft, a regimentar.

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Público Ilustrado

Sobre o Público ilustrado de ontem, só duas coisas.

Primeira: como muita gente apontou, os ilustradores não foram pagos. Já participei umas tantas vezes nesta iniciativa e é triste ver como isso continua a acontecer. Ainda se assume que ilustradores vão trabalhar a troco de visibilidade e ainda se fica à espera que agradeçam. Como é evidente, o Público também lucra com uma edição que, mesmo que marginalmente, vai ser comprada por colecionadores, curiosos e aficionados.

Segunda: quando participei, pensava que aquilo realmente iria acabar por provar que um jornal pode ficar a ganhar com a presença de mais ilustração. Mas isso não é uma lição que seja ou possa ser, ou queira ser aprendida. Os jornais pura e simplesmente não sabem o que fazer com a ilustração e muitos ilustradores não sabem o que fazer com um jornal.

Nesta última edição, percebe-se o carácter ad-hoc de quase todos os desenhos, encaixados conforme se pode numa base concebida com a fotografia em vista. Poucos faziam um bom par com as cores e tipografia densas. Muitos limitaram-se a ilustrar os temas dados com graçolas que pouco acrescentam – não vou dizer nomes, porque a coisa me parece sistémica. Já era assim no meu tempo e o problema é andar a põr-se por um dia um carro a gasolina a funcionar a electricidade. Vale pelo gesto ou nem isso.

Continua a ser um pouco triste ver bons ilustradores sujeitos a isto.

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A Nova Fundação

Da nova série inspirada na Fundação, de Isaac Asimov, o que gosto menos é a narrativa que rodeia a fundação própriamente dita. Sempre que se corta para o inóspito planeta Terminus onde fica fica sediada, dá-me logo vontade de fazer pause.

Em contrapartida, o que gosto mais nem aparecia sequer nos livros, o imperador tricéfalo, dividido em três clones com idades distintas. Via de bom grado uma série só sobre isto. É política, é governo, é pós-humanismo, é poder através do tempo, é inventivo, tem word-building e time-building. Tem, em suma, as melhores qualidades da série original.

A fundação, pelo contrário, é só gente aos tiros e a correr dum lado para o outro e a esfaquear-se e a arrancar olhos. Uma das citações mais conhecidas dos livros sentenciava que a violência é o último refúgio dos incompetentes. Quem a dizia era Salvor Hardin, que nos livros ultrapassou uma crise militar pela inteligência diplomática. Na série, Hardin anda sempre aos tiros, aos pontapés e a abrigar-se de explosões.

Não sou um purista. Não acho que um livro deva ser transposto tal qual para o ecrã. Marcou-me a mim, como a muita gente, que o protagonista dos primeiros livros da Fundação fosse a História, mas mesmo Asimov se cansou e tornou os últimos livros em Space Opera, que se lêem bem, mas nos deixam a pensar se tivesse levado a premissa até ao fim: o que sucederia se a filosofia da história fosse realmente uma ciência exacta. O que daí deriva é que a História muda de direcção e olha para o futuro. Foi coisa que já se tentou, por exemplo com o marxismo, mas que se desfez precisamente nos anos em que a Fundação foi escrita, entre os primeiros livros na década de cinquenta e o segundo ciclo, já na década de 1980.

Agora, recupera-se a Fundação no século XXI e é natural que a sua premissa duma fórmula matemática que dite a história já é impossível de se vender por si mesma. Precisa de todo o tipo de agência humana a conspirar em segredo para a apoiar, o que lhe retira a razão de ser. Suponho que isto ilustra a descrença recente nas ciências humanas, que se estende até a quem as pratica e se mostra cada vez mais disposto a acreditar em teorias de conspiração do que na existência de sistemas económicos, sociais e políticos que organizam os assuntos humanos de um modo que não pode ser realmente ditado pela vontade dos indivíduos. Aqui também se cai na facilidade narrativa equivalente a resolver problemas sistémicos disparando mísseis contra eles.

Ironicamente, os únicos personagens que têm uma visão sistémica dos problemas acabam por ser os imperadores.

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O Novo Dune

Resisti ao novo Dune durante quase toda a primeira hora, não por ser mau, mas por me parecer que vibrava, como se fossem três impressões a cores diferentes um pouco desfasadas entre si.

Já tinha visto quase as mesmas cenas com outros actores pelo menos mais duas vezes, no filme de Lynch e na mini-série. E, sem os actores, mais duas vezes, na novelização do primeiro filme escrita por Joan D. Vinge e editada pela Europa-América, e no livro original de Frank Herbert. Três, se contar o documentário sobre Jodorowski. Cada diálogo vibrava de familiaridade, até que o filme de Villeneuve se focou para mim como uma moeda que acaba de girar sobre uma mesa, e percebi que tinha aquela qualidade de estranheza que nos põe a sonhar à noite com certa narrativa. A violência alienígena, pós-humana de tudo aquilo, de como os cenários habitam tão bem a estreiteza do ecrã.

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Unseen by design

Magazine online sobre forma, política, estética e ética. Versão beta.

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Não ver cores

Nas últimas presidenciais, repetiu-se um fenómeno que seria curioso, não fosse ele assustador. Todos os candidatos de esquerda evitaram dizer o que quer que fosse de substantivo sobre racismo ou discriminação sobre pessoas lgbtq. Quando interpelados saiam-lhes chavões e generalidades. Nada de concreto, nada de incisivo, e também nada que pudesse sequer ser concentrado num slogan ou numa palavra de ordem.

A iniciativa de qualquer discurso político sobre estes assuntos continuou a sempre a ser da extrema direita. Há um embaraço geral da esquerda para falar sobre discriminação de minorias — as desculpas são muitas, porque aliena o eleitorado, porque dá força à extrema direita, porque divide a esquerda – e o resultado é que a extrema direita, define as linhas de força do campo de batalha.

A estratégia geral da esquerda, incluindo o PS, é dar o mínimo protagonismo ao que chamam políticas de identidade. É comum tomarem-se atitudes extremas em relação estas, fazendo-as equiparar em gravidade e perigo à extrema direita. O que são políticas de identidade? Anti-racismo protagonizado acima de tudo por minorias racializadas, feminismo protagonizado acima de tudo por mulheres, anti.discriminação LGBTQ protagonizada por pessoas LGBTQ.

Está-se num ponto em que se aceita pessoas racializadas, lgbtq e mulheres desde que não chamem a atenção para isso. É como que uma extensão do velho chavão do velho chavão homofóbico «Ninguém tem nada que ver com o que fazem na vossa vida privada» e isso é, como deveria ser evidente, a imposição de uma privatização.

Dirão que não é uma «privatização» sentido económico, mas esse uso é um estreitamento político do termo, que reduz o seu âmbito com consequências importantes. A principal delas é que certas lutas são isoladas a partir de fora, tornando-se pessoais e individuais, o que quer apenas dizer que lhes é negada a possibilidade de reclamarem comunidades, pontos em comuns, a posibilibilade de serem uma «coisa pública», uma res pública.

A economia tem-se revelado uma maneira de isolar certas lutas mais incómodas, mesmo à esquerda. Um exemplo típico é a versão de esquerda das trickle down economics. À direita, é a crença que favorecendo economicamente os mais ricos, os benefícios «escorrem» para baixo, não sendo necessário fazer mais do que isso pelas classes mais oprimidas. À esquerda é a crença que favorecendo economicamente as classes mais oprimidas, os benefícios «escorrem» para baixo eliminando preconceitos raciais, xenofobia, lgbtqfobia, misogínia, etc.

A experiência e a história desmentem qualquer uma destas crenças. Todas as tentativas de resolver a discriminação racial e de género como um problema de segunda ordem têm sempre falhado, porque não resolvem nada. Só varrem para debaixo do tapete. Desde as tentativas norte-americanas de resolver o racismo, tornando-o invísivel, às tentativas estalinistas de administrar politicamente etnias, à marginalização da homossexualidade, à laicização e desracialização forçada do Estado francês, tudo deu e dá espectacularmente para o torto.

Nunca é possível resolver questões de discriminação às cegas, fazendo de conta que não se vê cores, ou exigindo a minorias que sejam discretas, desaparecendo do espaço público. Este imperativo de supressão é, em si mesmo, um acto de opressão, percebido como tal pelas comunidades alvo.

Tem apenas a virtude de sinalizar o carácter visual da discriminação. Ou posto de outro modo, o seu carácter «invisual». Como aponta de modo muito certeiro WJT Mitchell, o racismo contemporâneo exprime-se como uma invisualidade: «eu sou cego às cores». O que tem como consequência e objectivo que o ónus e a culpa de ver o racismo cai em cima das minorias racializadas e dos seus aliados. São estes que vêem racismo em todo o lado.

O campo do anti-racismo contemporâneo é o de uma visualidade específica, de uma partilha do sensível, em termos Rancerianos, entre quem não vê e quem vê. O mesmo se poderia dizer do feminismo e do activismo lgbtq.

Dir-se-á que é uma questão de linguagem, mas a verdade é que ao recusar uma visibilidade política específica a minorias, uma representação, acaba por se reduzir estas lutas a áreas incómodas mas toleráveis porque já são tratadas como ghettos de qualquer dos modos. Estou a falar das artes e da cultura em geral. Poderíamos dizer que estas são as áreas onde se organiza oficialmente a percepção. É aqui um dos poucos sítios onde se tem valorizado a representação de minorias através de quotas, onde estas podem falar pela sua própria voz não mediada.

O resultado é a sua visibilidade percebida de modo hipertrofiado pelos que se recusam a ver. As artes são tratadas como um ghetto, e a função do ghetto não é apenas isolar mas também amplificar a percepção da existência de uma minoria, exacerbar a sua visualidade como com uma lupa. O ghetto torna visível a minoria, marca-a para ser discriminada, se essa marca já não for perceptível.

A limitação de práticas de igualdade à cultura sem que isso tenha eco no resto da sociedade, por exemplo na esfera da representação política, tem como consequência a percepção que as exigências de igualdade da minoria são despropositadas, tendo em conta que, por virtude, da própria discriminação essa minoria já parece ter destaque suficiente.

A solução será tornar essas discriminações visíveis em todas as esferas.

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Segunda edição

Como coleccionador de livros, ando sempre atrás de primeiras edições. Como autor, interessam-me mais as segundas.O meu livro «O Design que o Design Não Vê» está esgotado na editora. A Orfeu Negro vai lançar uma nova edição nas feiras do Livro. Aproveito para mais uma vez lhes agradecer pelo excelente trabalho e dedicação.

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Mini Reviews 01

Este é um primeiro ensaio de mini review em vídeo.

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Sobre a Tinta da China

Novo post no meu novo blogue.

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Aniversário

Hoje faz dezasseis anos que escrevo em público sobre design. Comemorei a ocasião com um texto sobre debates no meu novo blogue.

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Novo blogue

Tenho um novo blogue, dedicado sobre história recente do design, sobretudo no contexto português (mas não só). Chama-se monumentânea.

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Ano Novo

Decisões de ano novo: ter mais cuidado a comer; sair mais com a Rosa; continuar a ler mais ficção e revistas de design; ir a mais exposições. E, o mais importante, dedicar-me acima de tudo a design deste século.

Em termos de crítica dedicar-me a objectos concebidos e pensados agora. A conjunção «e» da última frase é crucial à sua compreensão. A grande maioria dos objectos mais públicos do design português podem ter sido concebidos agora, mas são pensados da década de noventa para trás.

Podem até ser grandes objectos, cheios de interesse, mas não são contemporâneos. Aparecem-nos agora, mas são feitos no século passado. E não há falta de quem fale sobre eles. Têm as suas monografias, as suas biografias, as suas exposições, as suas teses de mestrado e doutoramento.

O que é pior: muita da conversa em torno destes objectos também é feita com as vozes e os métodos do século passado. A monografia de design, acompanhada da biografiazinha do designer, é um formato chato, triste, quase inútil, na era da wikipedia e do pinterest.

Há formatos mais actuais, mais urgentes. Pegar-se na biografia de um modo subalterno. Em vez de fazer pela enésima vez a biografia do gajo branco criativo e pioneiro, porque não fazer biografias no feminino, ou de géneros de comunicação visual que não são considerados design precisamente por serem praticados fora dos moldes brancos e masculinos?

Porque não falar do design em termos de formas em vez de o agrupar pelo autor, pelo estúdio ou pelo cliente? Porque não falar de design feito em escolas não como um proto-design feito fora do mundo real mas como algo em si mesmo? Porque não falar desse design como um lado B (uma expressão feliz de Pedro Bandeira)?

Em todo o caso, o meu manifesto para 2020 é que os meus interesses, as minhas prioridades históricas e críticas começam depois de uma barreira traçada com o Porto 2001. Foi nesses anos que se revelou uma nova geração de designers: João Faria, os R2, os Barbara Says. Será aí que começa a história que é mais urgente tratar.

Estou farto do período heróico da edição de 1960, 1970. Estou farto da Almanaque. Estou farto do Luíz Pacheco. Estou farto da Afrodite. Estou farto da Assírio & Alvim. Venham coisas novas.


 

P.S. – E, como é evidente, muita desta história feita no século passado e sobre o século passado é tóxica, agressiva e exclusiva. Se me dessem uma moedinha por cada vez que uma luminária me veio pregar contra o que consideram não ser design ou quem não consideram serem designers. O que fica de fora? O design que correu espectacularmente mal: o design racista do Estado Novo praticado por «heróis» fundadores. O design praticado por mulheres. O design praticado fora do esquema liberal do estúdio a trabalhar para clientes de renome (instituições públicas ou Estado) e de formatos populares (identidade corporativa, capa de livro, cartaz).

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O Objecto do Ano

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Já disse qual foi o meu objecto de design português da década. Os meus objectos do ano são o livro História do Crime, de João Louro, com design dos Barbara Says, e Moer, de Ricardo Valentim e Ana Jotta, com design da Márcia Novais.

Foram finalistas do prémio do design de livro do qual fui júri. Não foram premiados, mas foram os que me assombraram mais. Um prémio é uma decisão coleciva e estou satisfeito com a que tomámos. Gosto de participar em júris porque me levam a decisões que não tomaria sozinho.

Mas fiquei a pensar nas possibilidades de um design português onde se premiasse por unanimidade estes dois livros. Que coisa gloriosa seria esse design!

Cada um desses livros é uma apropriação cuidada, sentida, de um outro formato. A História do Crime rouba um dicionário cujas entradas e imagens foram trocadas de modo maníaco. Moer é um livro de artista encenado como um parasita das colecções da Gulbenkian (curiosamente editado pela própria Gulbenkian).

Não sendo livros de design, são livros que põem em causa as expectativas do que deve ser o design e as suas tarefas: cumprem à letra a vontade dos seus clientes; ao fazê-los, o designer apaga o seu próprio estilo e mesmo identidade; mas revelam também que dentro do design a suposta neutralidade funcionalista nunca existiu; espera-se sempre um estilo, uma identidade, uma originalidade. São livros de artista que revelam cruelmente a inconsistência crucial do designer como deve ser, aquele que se diz humilde, aquele que se diz cumpridor, aquele que depois até gosta que lhe dediquem uns prémios e uns livros.

Sendo menos cruel, são objectos que expandem alegremente os limites do design, quando muito desse design prefere fechá-los ainda mais, perguntando se quem faz objectos destes é realmente um designer (retoricamente, porque acreditam numa resposta negativa).

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Mário Moura

Mário Moura, blogger, conferencista, crítico.

Autor do livro O Design que o Design Não Vê (Orfeu Negro, 2018). Parte dos seus textos foram recolhidos no livro Design em Tempos de Crise (Braço de Ferro, 2009). A sua tese de doutoramento trata da autoria no design.

Dá aulas na FBAUP (História e Crítica do Design Tipografia, Edição) e pertence ao Centro de Investigação i2ads.

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