The Ressabiator

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Se não podes pô-los a pensar uma vez, podes pô-los a pensar duas vezes

Por ocasião da morte de António-Pedro Vasconcelos, uma reflexão sobre o cartaz de Perdido por Cem.

Sobre António-Pedro Vasconcelos: o objecto que me vem sempre à cabeça é este poster. Andei por casa à procura do sítio onde o vi pela primeira vez, o álbum 60 Cartazes do Cinema Português, editado pela Cinemateca. Felizmente, dei com um post no facebook do Luís Manuel Gaspar a identificar o autor, Guilherme Lopes Alves.

O livro marcou-me. Foi uma espécie de consciência do design antes de seguir design. Eu, como muita gente, aspirava àquela coisa muito portuguesa da cinéfilia como uma espécie de catolicismo modernizado – veja-se João Benard da Costa, ou Oliveira, que penso ter sido até posto a fazer de padre, salvo erro por João Botelho. Para resumir, os cartazes funcionavam como pinturas religiosas ou aqueles santinhos de trazer no bolso. O cinema ainda era uma experiência aurática, religiosa, no sentido que Benjamin lhe dava. Sem VHS, sem DVDs, via-se num sítio, no cinema, em ambiente de recolhimento. Era um paradoxo. Ou antes, um mistério no sentido católico: um objecto industrial que podia ser vivido como uma cerimónia.

Os cartazes, tal como os livros da cinemateca, eram imagens, no tal sentido católico: não eram a “coisa”, nem podiam ser, mas funcionavam como lembranças, como placeholders, do divino. Neste caso, eram imagens de um outro tipo de imagens. Objectos criados para conjurar a experiência de sombras vistas no escuro por uns momentos.

Vi outros filmes de APV, nunca vi Perdido por Cem. Só lhe conheço o cartaz. É um objecto de design muito bom. Perfeito mas não perfeitinho. Funda-se no desenho, mas não é apenas ilustração. É realmente design num sentido antigo de ser um todo de texto e imagem. (Se calhar seria justo chamar-lhe até desenho, na acepção em que aqui em Portugal se chamava desenho ao design.)

O desenho, o traço, é o que começa por unir tudo, as letras e a imagem. É muito boa, aquela transição do retrato para a letra mono-espaçada do título, para aquela letra desenhada de terminações encaracoladas. O negrito e o ritmo regular da mono-espaçada (ou letra de máquina de escrever, para quem não precisa de saber estes nomes) ligam-se à espessura do traço do retrato. Diluem um pouco o peso dos negros mais escuros do topo da imagem. A letra de máquina de escrever dá a entender noticia, facto, escrita mecânica, profissional. A letra encaracolada dos créditos ecoa os caracóis da figura. A espessura cada vez mais fina conduz o olhar pela folha abaixo a terminar na citação, introdução, apresentação do personagem. É um percurso em z que começa na bala, passa pela cabeça e se esvai em vermelho no fundo da folha. Quase nem é preciso filme.

Que falta dizer?

É um tipo de desenho muito gráfico que estava em voga na época, arredondado e muito assente em superfícies postas em contraste por vazios e texturas. Era comum no meio publicitário, mas também se via gente das artes e da arquitectura a desenhar assim. Era o equivalente em desenho da Pop e do Psicadelismo. A Pop vê-se neste poster na ideia gráfica da carta de jogar. Para além da composição, pela simetria falsa da figura com a silhueta do texto, o pendor decorativo do desenho e a escolha do preto com destaques vermelhos dão a entender carta de jogar. Não forçam a comparação, reconstroem-na.

Filed under: Crítica

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