The Ressabiator

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Se não podes pô-los a pensar uma vez, podes pô-los a pensar duas vezes

Foto de Grupo, 1980.

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Gravei esta imagem para o disco não sei de onde. É provável que a tenha visto no facebook ou num blogue. Guardei-a porque conheço perfeitamente aquele lugar e aquele tempo.

Estudei naquela escola. É o Ciclo Preparatório de Vila Real. Sei que a fotografia foi tirada na passagem da década de 1970 para a de 80.

Não reconheço nenhuma das pessoas da foto, excepto a menina ruiva que me lembro de ver anos depois no Liceu Camilo Castelo Branco. Andava dois ou três anos à minha frente, portanto aqueles rapazes e raparigas devem ter agora cinquenta anos. A maioria terão filhos, talvez mesmo netos. É possível que alguns tenham entretanto falecido.

Ganhei o hábito de a ter aberta no desktop. Quando o computador vai abaixo, reabro-a. Comove-me de um modo que me surpreende, dado não me ser pessoal. Representa perfeitamente um conjunto de memórias minhas das quais não tenho as minhas próprias fotos.

Passei muito tempo na biblioteca, a parte mais elevada do edifício que se vê atrás. A entrada da escola era um portão assinalado pelos dois mastros mais altos. Chegava-se através de uma avenida recente marcada de cada lado por uma fieira de candeeiros de iluminação pública. Em frente ao ciclo, havia quintas, vinha, mato, pinheiro bravo. Agora, há vivendas, serviços, centros de saúde e pavilhões desportivos. É possível que todo aquele horizonte esteja hoje eriçado de casas.

A memória daquela paisagem é só um detonador para chegar ao que verdadeiramente me comove. Sensações às quais não é difícil aceder individualmente mas que se tornaram inacessíveis no seu conjunto.

Lembro-me daquelas nuvens sempre pesadas que pareciam tão sólidas a um miúdo transplantado do sol de Lisboa. Foi nesse preciso sítio, naquele pátio molhado pela chuva que vi nevar pela primeira vez, numa véspera de Carnaval penso que em 1983. Recordo-me de passar o Inverno com frio, com as botas e meias sempre molhadas como as das crianças da foto.

Quase não há fibras sintéticas, plástico ou nylon naquelas roupas. As cores são escuras, castanhos, ocres, os pretos têm o pardo das fazendas, os brancos, a sujidade natural da lã. Lembro-me do momento, também naquele pátio, em que percebi a ausência daqueles tecidos e cores antigas. Os meus colegas e eu próprio tínhamos trocado as samarras e as canadianas por Kispos de cores eléctricas, berrantes de televisão a cores.

Ainda hoje sinto uma espécie de aperto pela sensação e cheiro da fazenda junto à pele.

Se não tivesse outras maneiras de o fazer, poderia datar a imagem pelas roupas. Não sei quando se começa a ter consciência do tempo histórico, da passagem de uma época para outra. Penso que o que me atrai nesta imagem que não é minha é a lembrança por associação da parte da minha vida em que comecei a perceber o movimento da história, todas as sensações físicas, emocionais, que ficam para trás, soterradas pelo que viria depois, impossíveis de recuperar pelos dispositivos de memória habituais, mesmo os mais sofisticados.

Filed under: Crítica

One Response

  1. Inês diz:

    Deixei de acompanhar este blogue há vários anos, quando deixei de acompanhar vários blogues. Uma entrevista no Armário trouxe-me de volta e subscrevi as atualizações. Estes últimos quatro posts, só hoje lidos com a calma que merecem, reconciliam-me com não sei bem o quê (talvez com a ideia de blogosfera e de long reads que deixamos para mais tarde, algo que as redes sociais dificultam). Obrigada, pois, por continuar a escrever e a publicar aqui.

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