The Ressabiator

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Se não podes pô-los a pensar uma vez, podes pô-los a pensar duas vezes

Poder e visualidade no design.

Comecei uma colecção das vezes em que um designer defende que o design deve ser invisível. Esta aparece citada no livro de Silvio Lorusso, What Design Can’t Do (onde se criticam estas aspirações megalómanas do design)

A citação, de Bruce mau e Jennifer Leonard, junta muito claramente a ideia de invisibilidade e poder — quanto mais invisibilidade, mais poder. É comum examinar-se a parte que diz respeito ao poder, mas não a da invisibilidade.

Muita da conversa modernista do “less is more” tem que ver com uma redução da visibilidade, tal como certas insistências como a do valor do espaço negativo.

Poder-se-ia dizer que o design aspira a uma visibilidade negativa, normativa: a uma moralidade do visível.

Em nome de que poder é exercida essa moralidade: eu diria que do texto, da palavra — que ainda é o tipo de poder dominante na nossa sociedade. Daí o design ser mais respeitador da legibilidade do que da visibilidade. Diz-se tantas vezes que a leitura depende da invisibilidade (mais outro curioso paradoxo).

Se entendermos o design na sua acepção moderna, uma das suas funções foi a gestão dos embates entre o poder tradicional do texto e um outro poder que é o da imagem, assegurando a legibilidade e a invisibilidade. Que é como quem diz: o poder do texto.

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Deixei de conseguir de ver filmes ou séries sobre genocídios e atrocidades.

    Deixei de conseguir de ver filmes ou séries sobre genocídios e atrocidades. «Killers of the Flower Moon» só o confirmou. Não é propriamente ver, mas o preparar-me para ver. Tento, vejo um pouco. Depois termino a ver outra coisa qualquer. Aconteceu-me o mesmo com Son of Saul e outros tantos. Acontece-me com ficção.

    Não é a velha questão (com a qual discordo), de não se filmar o Holocausto. Um dos meus livros favoritos é «Imagens Apesar de Tudo», de Didi-Huberman, onde se desmonta essa obrigação da invisibilidade do Holocausto.

    Acho que se partiu qualquer coisa em mim quando a minha irmã esteve na Ucrânia e tive esse medo constante, total. Nunca mais consegui ver filmes sobre guerra da mesma maneira. Parece-me tudo demasiado absurdo (no caso dos filmes de acção, sobretudo tipo Marvel, mas também os 007). Ou então, se são bons, é difícil. O melhor processo é passar por eles, atravessá-los de uma ponta à outra. Só assim, se forem mesmo bons, se resolvem. Descobri isso com Grave of the Fireflies. Não se pode deixá-los a meio, porque também nos começam a assombrar.

    Tenho uma lista assim: os filmes de guerra de Rossellini, o de Big Red One de Fuller, o já mencionado Killers of the Flower Moon (e mais alguns).

    Sou cada vez menos cinéfilo. Custa-me ver as coisas essenciais. Deixo para o fim as obrigações canónicas. Tornei-me assim num ignorante. Mas não sou um crítico de cinema. Não percebo verdadeiramente a forma cinematográfica. Sou pagão, e parvo, na maioria dos casos. A única religião que me ficou foi custar-me ver filmes de atrocidades ao ponto de ter desenvolvido um modo de os atravessar que no final me deixa o sossego possível.

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    Design e Poder: as lutas entre o estúdio e a gráfica


    O historiador e designer Richard Hollis diz, a propósito dos Dadaístas:

    «The designer worked at a drawing board like an architect, producing a layout that provided instructions. In this way decisions were taken out of the hands of the printer and made in the studio, remote from the industrial process.»

    É uma afirmação simples, transparente, mas que sublinha uma ruptura fundamental na base da história do design: o acto fundador do design foi ter retirado as decisões (e o poder) das gráficas, colocando-as nas mãos de um profissional liberal, que assumiu o papel de intermediário entre o cliente e a indústria.

    Como Hollis afirma, o design, entendido como projecto, era um conjunto de instruções e, portanto, de decisões.

    Essas decisões eram de ordem fundamentalmente distintas das tomadas nas gráficas. As tipografias usavam processos que faziam depender as decisões formais da organização industrial do trabalho e da maximização do lucro. Não passava pela cabeça de ninguém encarar cada serviço como um problema novo a resolver.

    A história é contada do ponto de vista dos vencedores. É comum encontrar nos textos históricos passagens como a de Hollis, onde se fala até da resistência dos gráficos à modernização, ou aos novos métodos. É tudo colocado num plano de progresso abstracto. Em termos concretos, foi uma luta pelo poder, que o design, auxiliado pela tecnologia e pela estética, venceu.

    É irónico que hoje se veja o design como, essencialmente, tipografia, e se recuperem os bons velhos tempos da composição em gráfica, como se fossem os bons velhos tempos do design. Não são. Nem nunca foram.

    Nas imagens:

    — O auto-retrato de El Lissitsky como o construtor, mostrando uma versão idealizada do designer com os seus instrumentos de trabalho.

    — Um projecto de capa de Vitor Palla. Ele compunha e desenhava o texto das suas capas, porque a composição em gráfica encarecia o processo (e retirava-lhe capacidade de decisão, claro).

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    Os cartazes da campanha legislativa de 2024

    Análise interessante de Pacheco Pereira sobre os outdoors e cartazes da campanha.

    De facto, a maioria das forças políticas fazem cartazes genéricos que aspiram mais a ocupar o espaço mediático, promover as cabeças (literais) de lista e a falar aos convertidos do que a convencer. A excepção, e nisto concordo com JPP, são os outdoors da AD onde há uma preocupação em fazer um argumento visual, textual – em convencer. As graçolas do IL e as ameaças do Chega são os mais “gráficos”. Apelam mais a sentimentos profundos do que a mudanças de opinião. O resto é genérico. O Bloco tenta fazer de conta que pertence ao bloco central. O Livre ocupa o espaço deixado livre pelo Bloco no que diz respeito ao que os designers entendem por design: superfícies planas de cor, símbolos gráficos, tipografia (um bocado a martelo) – longe vai o tempo da campanha por Joacine com as ilustrações de Amanda Baeza ou do logo de Vera Tavares, lufadas de ar fresco que o partido não mereceu de todo. O PCP tem boa fotografia, compáravel à da AD mas sem conteúdo substantivo (como de resto o Bloco e o Volt). O PS é mais fraco a nível gráfico e indeciso do que o PSD.

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    As noites do Club Kitten 2001 – 2004

    Artigo no Público sobre as noites Club Kitten no Triplex.

    Andei por essas noites, entre 2001 e 2004. Foi um período estranho da minha vida. Em 2000, comecei o primeiro emprego «a sério», que dava para pagar as contas. Comprei casa, e pela primeira vez vivi sozinho. O que me lembro desses anos é um vazio. Demorei tempo a perceber que foram os anos em que me fiz adulto. O vazio que sentia era o do fim de tantas coisas. Da adolescência, dos estudos, de uma série de ilusões, de fazer bd, de fazer programação.

    Pela primeira vez deixava livros a meio, porque com o emprego e o mestrado não dava. Ainda tenho esses livros na estante, como quartos fechados à espera.

    Foi o período em que me redefini. Terminou quando comecei a escrever sobre design no blogue. Só então encontrei um propósito.

    Há um livro de Paul Auster cujo título define tão bem a entrada na idade adulta: The Invention of Solitude. As minhas amizades bascularam. Virei-me para dentro em termos pessoais e para fora com a escrita.

    Foi o período entre o 11 de Setembro e o Ressabiator. Foi o pós Porto Capital da Cultura.

    Não me lembro da última vez que saí de uma dessas festas na Avenida da Boavista para apanhar taxi ou boleia para casa.

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    The Ressabiator faz vinte anos este mês

    O meu primeiro blogue, The Ressabiator, faz vinte anos no fim deste mês. Não tenho nada de importante planeado. Ao longo do mês, farei alguns posts curtos. Fiz um upgrade pago para não ter publicidade.

    Não sei se mudo de template. Por um lado, estou um bocado farto. Por outro, já é um site histórico e se calhar devia ser mantido como foi durante tanto tempo.

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    “Why Graphic Culture Matters”, Rick Poynor

    Acabei de ler agora mesmo “Why Graphic Culture Matters”, de Rick Poynor. Reúne textos escritos entre 2002 e 2017. São peças curtas. Escritas sobretudo para revistas ou blogues.

    Decidi-me a ler este livro porque verifiquei que Poynor acredita que o design gráfico deixou de se interessar pela forma visual. É uma intuição interessante, que em parte compartilho. É uma das razões pelas quais criei o projecto “Unseen by Design”.

    Acho que há uma dificuldade muito grande por parte do design em falar sobre visualidade e forma, sobretudo quando as relaciona com política.

    Poynor é um crítico com uma excepcional intuição para este tipo de problemas. Porém, esta recolha de textos sofre talvez de olhar para as primeiras décadas deste século através da lente do design das décadas de 80 e 90. A invocação do pós-modernismo e do experimentalismo do período são constantes, tal como o uso de conceitos datados como o designer como autor.

    Quem julgue as primeiras décadas deste século por estes textos ficará talvez a pensar que as novas gerações são confusas, ignorantes da história e das “verdadeiras” funções do design gráfico. Tal deve-se a serem avaliadas por uma bitola que não é a sua. Os novos designers preocupam-se com política, especialmente laboral, com identidade, embora não necessariamente a do designer clássico, com forma e visualidade, embora por vezes de modo muito distinto da que era praticada pelo modernismo.

    O design não está hoje menos interessado na forma visual do que durante os anos da Emigre. Não se trata de uma ausência de visualidade por si mesma, mas de uma viragem quase total para a tipografia e para a visualidade do texto, em detrimento da imagem fotográfica e da ilustração (Poynor refere o abandono da fotografia e a emancipação disciplinar da ilustração em textos).

    A própria capa do livro confirma a tendência: é a primeira recolha de textos de Poynor com uma capa puramente tipográfica, onde não surge nenhuma imagem ou motivo decorativo para além do texto.

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    “Livros de Fotografia em Portugal: da Revolução ao Presente” (Lançamento)

    Participei no livro com um pequeno ensaio que gostei bastante de escrever. Vou estar nesta conversa.

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    Um balanço de 2023

    Tinha pensado dedicar 2023 à imagem no design. Pouco fiz. Só na segunda metade do ano retomei as leituras nessa área.

    Acabei a investigar o caso da História do Design Gráfico em Portugal, do qual saíram muitíssimo mal os parceiros que lançaram cá para fora uma obra com um ror de problemas. Para os resolver, reeditaram-na ainda com um ror de problemas. Acompanharam-na com uma sucessão de desculpas indignas. Ficou mal o jornalismo (o jornal que lançou a coisa), a edição (a editora que, face à “escassez de papel”, conseguiu ainda assim soltar a coisa no mundo), a academia (a instituição académica que também editou a coisa), e, abaixo destes todos, o design como disciplina. Décadas de suposto rigor científico, de discussões sobre ética e crítica, redundaram em silêncio, se não cumplicidade.

    (Confesso que me parece pueril todo o rasgar de vestes em torno da vinda da inteligência artificial, quando pouco se está disposto a fazer em relação a problemas perfeitamente artesanais como os da HDGP.)

    Aos que meteram a cabeça fora do buraco neste caso, aos que falaram, aos que se indignaram em público, aos que ajudaram, à equipa, a todos, enfim, que, na Hora H, estiveram lá: “We few, we happy few, we band of brothers.”

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    No more ‘I love You’s’

    Não tenho listas de fim de ano. Fugi das séries e filmes mais falados. Não para descobrir pérolas escondidas. Ou para manter a independência. Fi-lo para escapar à obrigação de ter sobre elas uma opinião. Não sou crítico de televisão ou de cinema.

    Este ano, canalizei a minha opinião e atenção para outros fins: o caso da História do Design Gráfico em Portugal e as implicações na minha família do 7 de outubro e da guerra em Gaza. É-me muito difícil ver filmes ficcionais de guerra desde a invasão em grande escala da Ucrânia.

    Dou-me bem com entretenimento de pequena escala sobre o qual quase ninguém fala. Gostei de Drops of God, um thriller familiar sobre vinhos, adaptado de uma BD japonesa. Aprendi a apreciar momentos isolados em séries que, provavelmente, não terminarei.

    Há um desses momentos no começo de Murder at the End of the World. É uma cena onde são transparentes os processos dos argumentistas e dos actores. Temos conhecimento do truque, mas ele não fica menos forte por isso. O casal representado por Emma Corrin e Harris Dickinson ouvem “No more ‘I love You’s’”, de Annie Lennox, na aparelhagem do carro enquanto vão investigar a última pista de um caso envolvendo um serial killer. Cantam em conjunto, estabelecendo a sua cumplicidade frágil e tensa. A música é um augúrio. A série não voltou a “apanhar-me” deste modo.

    Investiguei “No more ‘I love You’s’”. Não sabia ser uma cover da banda The Lover Speaks. A versão original lembra-me a tendência de que faziam parte os Sétima Legião. É mais rápida e apoiada em sintetizadores que a versão de Lennox. Mal se ouve o dubidubidu. O teledisco é tão típico dos anos 1980: uma tentativa de fazer um filme mudo expressionista com o pixel esmagado do vídeo da altura.

    Logo que vi o nome da banda, The Lover Speaks, tive de ir ver se “No more ‘I love You’s’” era inspirado em Barthes. De facto é um disco inteiro inspirado em Fragmentos de um Discurso Amoroso. A banda cruzou Barthes com o gótico dos New Romantics. Os anos 1980 foram realmente uma década de portentos.

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    Vinte anos de design de livros

    Não encontrarão este “Três Ficções”, de Jorge Luís Borges, feito em 2004, nem em livrarias ou nos alfarrabistas. Encontrei-o este ano em casa dos meus pais. Tenho por hábito devolver os trabalhos aos alunos. Este, assinada pela Rita Brandão, escapou.

    Dá uma sensação de velhice ver os trabalhos dos meus primeiros alunos atacados por picos de acidez.

    Já não me lembro da nota ou da apreciação que fiz. Agora, acho o texto das hierarquias secundárias (autor e editora) muito miudinho. O interior é elegante, com margens bem proporcionadas, mas demasiado amplas. A fonte usada é a Mrs. Eaves, que teve o seu pico nos primeiros anos deste século.

    Ao folhear este livro, olho também para mim como professor, há vinte anos. Ainda dou o mesmo texto, três contos de Borges, escolhidos pela dificuldade de composição. Incluem uma grande lista alfabética, dois diagramas, duas epigrafes e notas de rodapé, poucas, mas extensas. O texto tem muitos números e nomes próprios, garantindo a dificuldade de obter uma mancha de texto uniforme.

    Este ano será a última vez que dou o “Três Ficções”. A cadeira acabará. A proposta durou vinte anos. Nem sempre usei o mesmo texto. Regressei-lhe sempre. Aprendi a ensinar o design do livro com ele. Sabia tão pouco quando comecei.

    Até aí, não se dava um livro completo para os alunos projectarem e paginarem. Não havia meios para isso. O que os designers faziam era acima de tudo as capas e o projecto geral do interior. A composição era uma tarefa especializada que estava mais do lado dos editores, tipógrafos e revisores. A relação do designer com este meio era a de um forasteiro (aquela palavra estrangeira) que, quando fosse grande, aspirava ser como um arquitecto numa obra. Era, mais do que tudo, tolerado.

    A ideia (e a possibilidade técnica) que um livro de texto podia ser todo feito por um designer, um único designer, era nova. Foi assim que comecei a dar o design do livro, porque me parecia haver cada vez mais necessidade para ensinar a fundo os formatos editoriais aos alunos.

    Vinte anos depois, o que ficou? Os meus alunos entregaram-me a última leva de “Três Ficções” na semana passada. Alguns são muito bons. A maioria cumpre — o que já de si é bom.

    O que ficou… Todos os anos, entre quarenta e cinquenta livros, muitos deles bastante realistas. Têm mais design do que se vê habitualmente nas livrarias – no sentido em que são projectados como um todo, e resolvem o livro como um problema do qual a tradição é apenas um dos dados. O livro português só muito raramente tem design neste sentido. Fica-se pela capa, esse átrio por onde o design entrou há tantos anos.

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    Os menus da Cunha

    Fico sempre feliz de me ter lembrado de fotografar o menu da Cunha. É uma janela para uma gastronomia que, em larga medida, desapareceu. Pratos novos então e hoje banais, como os hamburguers no prato, ganhavam exotismo quando a tradução lhes inventava um nome: “bife raspado com ananás” (que me fazia pensar que a carne era esfregada no fruto como se esta fosse um reco-reco).

    Quando fechou, já não ia à Cunha pela comida há muito tempo. Era cara e não chegava a ser boa, nem sequer pelos seus próprios padrões. Ia pelo ambiente, pelo espaço e por estar aberta até muito tarde. Ia pela experiência. Era e sempre foi esse o ponto, mesmo quando a comida era melhor.

    A Cunha não foi concebida para ser autêntica, mas uma experiência. Era uma feira burguesa, um parque temático dedicado a sociabilizar em torno da comida de um modo muito específico.

    A Cunha era um snack-bar à antiga, uma reconstrução portuguesa e modernista do Diner americano. Cruzava restauração, design e arquitectura filtrados por uma experiência total concebida para ser fílmica, fotográfica e sonora – alguns dos snack-bars arquetípicos tinham nomes que evocam o som, Pam-Pam.

    Nunca foram autênticos, e talvez por isso sejam uma experiência impossível de replicar. Fixavam um sonho específico, de cinema, de América, de modernidade, que já só existe enquanto artefacto arqueológico.

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    Os “Claude Glasses” e a fotografia como desejo

    Os «Claude Glasses» ou «Black Mirrors» foram uma moda entre os turistas do século XVIII. Eram pequenos espelhos de tom escuro e ligeiramente côncavos. Reflectiam e enquadravam uma cena dando-lhe o ar de uma pintura de Claude Lorrain. O turista olhava para o reflexo de uma paisagem de costas – uma atitude muito satirizada.

    Estes dispositivos de enquadramento estavam associados ao conceito de pitoresco. W.J.T. Mitchell considera o pitoresco como um dos primeiros exemplos de Found Object – algo banal ou descartado cuja descoberta o transforma numa experiência estética.

    Os «Claude Glass» ilustram que invenções como a fotografia são talvez concretizações de desejos profundos do que pura e inesperada descoberta.

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    A censura tem a sua iconografia própria

    O Frederico Duarte, no instagram, chama a atenção que a própria Câmara de Oeiras já inha sido acusada de usar outdoors para se autopublicitar.

    É muito interessante que, neste caso, Isaltino tenha decidido tapar os outdoors com uma mensagem a acusar a Comissão Nacional de Eleições de comunicar com os municípes.

    O que me interessa aqui é o aproveitamento retórico da censura. Isaltino coloca um pano negro sobre o outdoor acrescentando-lhe um comentário dando a entender que está a censurado. Lembra aquelas capas de livro onde os próprios autores dão a entender um conteúdo picante ou proibido colocando rectângulos negros sobre tudo.

    Nem toda a censura é um apagamento total. Há uma linguagem gráfica para a censura que pode ser usada contra ela. Se um artigo cortado deixa um espaço branco, isso indica ao leitor que houve censura. Daí que em ditadura se comece a proibir não apenas um artigo mas o espaço vazio que deixa. É uma censura da ausência.

    Isaltino devia portanto saber que retirar o cartaz sobre os abusos sexuais da igreja não ia ser um apagamento total mas a criação de uma imagem de censura. Há poucos sinais gráficos tão poderosos como um rectângulo negro que se sabe ocupar o lugar de qualquer coisa. São metasinais que comunicam opressão.

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    Um conjunto de pensamentos ociosos sobre o valor das imagens (ou mais concretamente sobre imagens que apagam outras ou que, antes pelo contrário, as multiplicam e amplificam).

    Sob o ponto de vista da imagem, as JMJ têm sido palco para todo o tipo de embates.

    O primeiro recontro foi entre o palco e a escultura-falo de Cutileiro. O segundo foi em torno do tapete de notas de 500 euros de Bordallo II. O terceiro foi a censura do outdoor sobre os abusos sobre menores por parte da igreja católica.

    (Não sei se me escapou mais algum.)

    Tanto o Cutileiro como o outdoor saíram apagados do embate. A escultura foi temporariamente apagada. Desapareceu por uns tempos e já não se fala do problema que foi encobri-la.

    Ao ser apagado, o outdoor tornou-se numa imagem ainda mais forte: o rectângulo negro é uma representação gráfica clássica de censura que circulará nas redes sociais e será mais forte do que a imagem original. Nem é necessário confrontá-la com a imagem original.

    Por contraste, a estátua foi emparedada por um palco e portanto não consegue sequer produzir uma imagem de ausência.

    Já o tapete de Bordallo II é o único em que o embate se traduziu numa espécie de diálogo: o presidente da Câmara responde ao tapete com outro tapete. É um debate de tapetes. Já li que foi uma intervenção inócua. Talvez essa avaliação se deva ao facto de ser possível responder-lhe na mesma moeda.

    Tende-se avaliar melhor a arte política que não admite resposta ou aquela a que se responde com iconoclastia. Por essa bitola, a obra de Bordallo II foi um perfeito fracasso. Não só não pode ser censurada como ainda gerou um diálogo de imagens.

    O que é mais eficaz? Depende do ponto de vista. O rectângulo negro de Isaltino é a imagem perfeita, terrível e irrespondível, mesmo que isso possa ser mobilizado contra ele. O tapete de Bordallo II é uma conversa, talvez por ser uma intervenção imperfeita, que deixa algum espaço de manobra e portanto permite versões alternativas e dialogantes.

    O tapete lembra a marca Porto. Foi concebida através de um sistema modular e generativo para representar abertura. O ponto final queria significar um fecho, mas aliado ao sistema generativo essa intenção perde-se. Ou antes dilui-se e torna-se combinatória. O ponto autoriza a vírgula, os dois pontos, os três pontos, o ponto de exclamação. Torna-se num diálogo. Como dizia, E.M. Melo e Castro: pode-se escrever com isto.

    Nesse aspecto, tornou-se desde o primeiro momento numa marca urbana verdadeiramente política no sentido em que não consegue vedar o seu uso aos seus interlocutores ou aos seus adversários

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    O papel da imagem nos processos de racialização

    O tweet é de há um ano. A imagem é mais antiga.

    Acredito que, no que diz respeita à política, as imagens “falam” mais do que as palavras. Pelo menos, mostram outra história.

    Antes da invasão em larga escala da Ucrânia pela Rússia, era comum discutir com pessoas que defendiam a União Soviética como inovadora no que diz respeito ao tratamento e promoção de minorias. Baseavam a sua posição principalmente no livro de Terry Martin, Affirmative Action Empire: Nations and Nationalism in the Soviet Union 1923 – 1939 (2001).

    Uma parte do argumento corria assim: a União Soviética promovia minorias étnicas (as chamadas nacionalidades) reprimindo a identidade étnica dos russos. Esta política criava desconforto entre os russos, que gostariam também de ver a sua identidade nacional promovida.

    Os cartazes contavam o outro lado da história. Havia duas correntes de racialização a funcionar. As minorias étnicas e nacionalidades colonizadas eram mostradas com vestuários rurais, roupas étnicas, e tons de pele escuros. Os russos ocupavam o centro da imagem com roupas modernas e peles claras. É assim que o racismo funciona: para construir o nativo de cor é preciso também construir o branco metropolitano.

    As roupagens nacionalistas eram negadas aos russos porque o nacionalismo era visto como um berloque com o qual se podia atrair os povos atrasados. Ainda hoje, no contexto da relação da Rússia com as suas ex-colónias, as acusações de nacionalismo ou até de nazismo cumprem o papel de um insulto étnico.

    Muitos destes cartazes reapareceram nas redes sociais depois da invasão em grande escala da Ucrãnia.

    O racismo, a colonização e o imperialismo são processos que têm a sua visualidade própria. Que operam através das imagens. Basta lembrar a relação da fotografia com a colonização. Ou o carácter eminentemente visual do racismo.

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    Velhas discussões recuperadas para o AI

    O trecho seguinte aplica-se perfeitamente às imagens geradas por AI. Leo Steinberg citado por W.J.T. Mitchell:

    «One way to cope with the provocations of novel art is to rest firm and maintain solid standards. . . . A second way is more yielding. The critic interested in a novel manifestation holds his criteria and taste in reserve. Since they were formed upon yesterday’s art, he does not assume that they are ready-made for today . . . he suspends judgment until the work’s intention has come into focus and his response to it is—in the literal sense of the word—sym-pathetic; not necessarily to approve, but to feel along with it as with a thing that is like no other.»

    Muitas das reacções ao AI não são novas – o problema não é a sua falta de novidade. Tendemos a criticar usando o sistema de valores que já temos.

    O problema é criticar-se a AI por via de preconceitos antigos. Muitos são os mesmos que se ouviam quando se generalizou o uso de computadores no design.

    Penso que não será possível fazer uma crítica eficaz ou perceber sequer os problemas sociais que envolve sem disrinçar esta discussão de debates mais antigos. A conversa em torno da inteligência artificial reproduz velhos esquemas: por exemplo, a desconfiança em relação à imagem. Tal já sucedia com as redes sociais, e antes disso com a televisão. Antes ainda sucedeu com a fotografia, e com as várias técnicas de gravura. Sucedeu ciclicamente com a relação da arte com a religião.

    Penso que para se perceber o impacto da AI será preciso perceber que as discussões têm por vezes dinâmicas que são próprias e são impostas aos objectos de que tratam.

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    Copiar na era do AI

    Uma das reacções mais comuns contra modelos de inteligência artificial como o Midjourney ou o ChatGPT é que roubam tudo a partir de outras fontes. Também nada disto é novo. Jean Giraud é um dos melhores autores de BD de sempre. Mas nada do que fez era original, sobretudo nos termos estritos com que se costuma discutir a originalidade. Como qualquer autor da época, tinha uma colecção de fotos e de anúncios onde ia buscar não apenas poses mas ideias. Essas fotos tinham autores, modelos, etc.

    Se era ou não era um roubo, a resposta sempre foi complicada. O trabalho transforma o que copia? A cópia é lesiva para o autor copiado?

    Tende-se a ver os direitos autores como uma questão formal, que se deve observar como um princípio de honra ou de educação. Cumpre-se sem perceber bem o porquê. Daí que quando há casos de plágio praticados por gente com responsabilidade, uma das “defesas” é que são só regras que ficam no caminho da criatividade, que quem critica não percebe e é retrógrado. É poeira atirada para o ar.

    O centro da questão é sempre se a cópia lesa a pessoa copiada – e não um princípio abstracto de originalidade.

    Se este princípio fosse imperativo e se os direitos de autor fossem absolutos e eternos, não seria possível criar nada de novo. Porque qualquer criação com algum significado joga com a familiaridade ou com a tradição.

    O direito de autor está quase completamente contaminado pelo direito de posse capitalista. Tornou-se sinónimo de propriedade intelectual, que é muitas vezes um sinónimo de pôr uma vedação à volta de bens comuns.

    É essencial colocar a tónica da discussão no sítio correcto: evitar que a AI seja mais outra numa longa série de expropriações em nome do capital. Seria outra conversa se a AI fosse uma expropriação no sentido oposto. Para isso, o direito teria de estar mais do lado do utilizador comum e não de grandes firmas de administração de propriedade intelectual.

    Há um movimento por parte de autores, actores e criadores que recusam (e bem) que o seu trabalho seja usado para treinar AI. Tal não vai impedir o desenvolvimento de modelos como ChatGPT ou o Midjourney. A Adobe, para infringir direitos de autor começou a recorrer a bases de imagens das quais detém os direitos de autor. O resultado, ironicamente, é um AI mais privado.

    Não tenho conclusões.

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    Pattern Recognition

    Gosto mesmo muito de William Gibson. É dos poucos escritores de quem li quase tudo, sem ter de fazer isso um frete.

    O seu melhor livro, ou o que mais gosto, é Pattern Recognition. Escrito no rescaldo do 11 de Setembro, ainda é a premonição mais rigorosa do que veio a ser a internet. É dos melhores livros de ficção sobre design.

    Aprecio em Gibson o modo como descreve os seus personagens comparando-a a actores. Faz sentido nos seus livros, porque fala muito de empresas e marcas. As pessoas das suas histórias também se formam em relação às marcas vivas que são as celebridades.

    Sobre Cayce Pollard, a protagonista de Pattern Recognition, literalmente alérgica a mau design, há esta passagem:

    “Pupils contracted painfully against sun-bright halogen, she squints into an actual mirror, canted against a gray wall, awaiting hanging, wherein she sees a black-legged, disjointed puppet, sleep-hair poking up like a toilet brush. She grimaces at it, thinking for some reason of a boyfriend who’d insisted on comparing her to Helmut Newton’s nude portrait of Jane Birkin.”

    Prefiro, sempre que possível, celebrar os mortos pela influência que tiveram. Na verdade, não sei nada sobre eles que não isso.

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    Há uma ética para o design gráfico?

    É quase um lugar-comum constatar que todo o design é político. Porque tudo, acrescenta-se, é político.

    No que diz respeito à ética, a situação não poderia ser mais distinta: são frequentes os apelos para que se desenvolva, finalmente, uma ética do design. A ética é, quase sempre, colocada fora do âmbito do design, no futuro ou em práticas alternativas.

    O problema é que o design já possui sua própria ética. Ele é, em si mesmo, uma forma de ética.

    Quando alguém aprende a ser um designer, não se limita apenas a noções de como compor elementos, lidar com tipografia ou organizar seu tempo e recursos. Uma parte importante do aprendizado, talvez a mais identitária, diz respeito à ética profissional. Ela não apenas dita como o designer se comporta, mas também determina que, por meio de seu comportamento, ele realmente é um designer.

    Essa ética dita quais trabalhos um designer pode fazer, para quais pessoas e instituições pode trabalhar, como e onde deve praticar, qual o protocolo para apresentar seu trabalho ao cliente, ou como integrar aspirantes a designers na profissão.

    Esse código deontológico estende-se às opções formais. Cores vibrantes e formas enviesadas significam “designer de autor”, feito para o próprio designer e não para o cliente. Grelhas rigorosas significam cumprimento abnegado de um serviço.

    O designer deixa de lado sua individualidade. Deve ser invisível. Não trabalha para si próprio, mas para o cliente ou para o bem da sociedade. Trabalha sempre, salvo raras exceções, para um cliente. Exerce como profissional liberal ou dentro de uma empresa de design. Essas e outras máximas constituem um código não declarado de conduta, uma deontologia.

    Se o designer infringe ou aparenta infringir esse código, é rotulado como “um artista”, e seu design é rebaixado a arte ou teoria. Perde simbolicamente seu estatuto profissional.

    A razão pela qual é tão difícil introduzir propostas éticas dentro do design não é a ausência, mas sim o modo como essa atividade se define desde o primeiro momento em termos éticos.

    Filed under: Crítica

    Mário Moura

    Mário Moura, blogger, conferencista, crítico.

    Autor do livro O Design que o Design Não Vê (Orfeu Negro, 2018). Parte dos seus textos foram recolhidos no livro Design em Tempos de Crise (Braço de Ferro, 2009). A sua tese de doutoramento trata da autoria no design.

    Dá aulas na FBAUP (História e Crítica do Design Tipografia, Edição) e pertence ao Centro de Investigação i2ads.

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