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Se não podes pô-los a pensar uma vez, podes pô-los a pensar duas vezes

“Fatalismo ou quê?”

Em 1954, editou-se um número especial da revista O Gráfico dedicado ao centenário do nascimento de Libânio da Silva, tipógrafo, autor de um Manual de Tipografia (1908, reeditado em 1962).

A homenagem é intensa e – por vezes – embaraçosa: há versos dedicados ao tipógrafo (que também foi poeta); reproduz-se a dada altura a sua certidão de baptismo. Mas, apesar da comemoração, há também um tom constante de queixume e nostalgia. Fala-se do rigor e da integridade dos velhos tempos, denunciando a estreiteza dos tempos que correm – não se trata tanto da celebração de um tipógrafo desaparecido, como de um conjunto de criticas mais ou menos directas à actualidade de 1954.

Fala-se da concorrência desleal, das condições de aprendizagem nas gráficas, da profissionalização apressada através de estágios pouco exigentes, da dificuldade de estabelecer tabelas de preços, dos clientes dispostos a sacrificar qualidade por uns tostões, de como não existe um gosto próprio para a tipografia em Portugal. Fica a sensação que pouca coisa mudou, comparando estas queixas com as dos actuais designers.

Da parte dos louvores, também não há grandes mudanças: faz-se um apanhado das celebridades que também foram tipógrafos (Teófilo Braga, Antero de Quental e, como seria de esperar, um actor, Taborda) e dos operários que, tal como Libânio da Silva, foram poetas. Se fosse agora, falar-se-ia dos designers que apareceram como personagens em filmes ou dos escritores e actores que já foram designers. Se na altura era habitual os tipógrafos serem jornalistas ou poetas, agora são artistas, DJs ou músicos.

A ligação à cultura, ao ensino e à intervenção politica como forma de legitimação nas artes gráficas também não mudou muito. Libânio cumpriu todos estes pontos: trabalhou para clientes culturais; escreveu um manual de tipografia e era conhecido pelas condições de aprendizagem das suas oficinas; escreveu e conferenciou sobre as condições de trabalho e as tabelas de preço das tipografias.

Tudo isto pode dar a sensação que as coisas não mudam – que as queixas do tempo de Libânio ou do tempo do seu centenário em 1954 são as mesmas que se fazem hoje. E que, se não as coisas não mudam, não vale a pena mudá-las (um dos artigos da revista intitulava-se apropriadamente “Fatalismo ou quê?”).

No entanto, as coisas mudaram: desde essa altura, gráficos (execução técnica) e designers (trabalho de concepção) separaram-se em duas profissões distintas. O design começou a ser ensinado em universidades, o que melhorou talvez a legitimidade da profissão, mas também a isolou dos direitos laborais que os gráficos tinham obtido através da sindicalização. Os gráficos eram essencialmente operários e industriais fabris (logo sindicalizáveis), enquanto os designers se vêem a si mesmos como profissionais liberais, mais aproximados a arquitectos, advogados ou médicos, que, até há pouco tempo, era difícil associar à ideia de precariedade laboral. Na realidade são, na sua grande maioria, operários das indústrias de serviços, e ficariam a ganhar organizados em sindicatos.

O ensino também teve outras consequências. A aprendizagem deixou de ser toda feita no local de trabalho. Os estágios deixaram de ser a única maneira de aprender, passando a complemento do ensino das escolas – esta é a versão caridosa: na prática, continuaram a ser uma maneira de arranjar mão de obra barata.

O ensino do design também se tornou numa profissão, embora continue a ser vista como um segundo emprego (e um emprego de segunda) em relação à prática profissional. Apesar de tudo, lentamente, a investigação teórica, a crítica e a história vão-se tornando especializações – não apenas para cumprir exigências de progressão de carreira no ensino superior mas também fora das universidades, no jornais, revistas e blogues. A internet deu meios, a quem se interesse pela escrita, para que a reflexão sobre o design seja quase quotidiana. Conferências e exposições vão apregoando o design e criando públicos.  Nas escolas, mestrados e doutoramentos garantem que a investigação se vai fazendo, mesmo que a sua divulgação seja fraca ou mesmo nula.

Muito mudou, para pior ou para melhor. As frustrações são parecidas, mas não as mesmas.

Filed under: Crítica, Cultura, Design, História,

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