The Ressabiator

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Se não podes pô-los a pensar uma vez, podes pô-los a pensar duas vezes

Geração Espontânea

Aparentemente, o dia 23 de Janeiro arrisca-se a ficar para história como a data de nascimento da Geração Parva. Não fosse a austeridade, até se poderia  propor um novo feriado. Foi nesse dia que os Deolinda apresentaram no Coliseu do Porto a sua música “Parva que sou”, um lamento dedicado à chamada “Geração sem Remuneração”. Não vejo muita televisão, nem vou a concertos; só soube da canção através dos links que muita gente fez, associando um dos meus textos a essa música, mas tive a consciência clara que, naquele dia no Coliseu, nasceu uma  nova identidade.

Rapidamente, o momento seria interpretado pelos comentadores do costume. Muita gente queixou-se da música, da letra ou do grupo – nos tempos que correm já não se mata o mensageiro; desdenha-se o  modo como se veste, critica-se o timbre da sua voz e, finalmente, dá-se a entender que ganhar dinheiro com a entrega de mensagens sérias afecta a honestidade da mensagem.

Seria talvez mais interessante prestar atenção ao facto de ter aparecido um grupo que canta uma espécie de música de intervenção irónica, onde, apesar de toda a denúncia e queixume, as pessoas se vão conformando e aceitando uma situação absurda, como se fossem parvas. Muita gente o referiu, chamando a atenção que isto não chega a ser um grito de revolta, mas um mero desabafo emocional, que não se compara às velhas cantigas de luta, etc. Porém, o que torna estas canções trágicas é precisamente a sua ironia: são músicas de luta para pessoas que não acreditam nas músicas de luta, excepto como uma forma de nostalgia kitsch. Como muita arte, design e música que se dedica actualmente a temas políticos em Portugal (e não só), nunca se pode permitir a ser realmente um protesto, mas apenas o pastiche de um (é uma boa receita para a repressão autoritária de baixa intensidade: dar a entender que a ironia é esteticamente mais interessante que a sinceridade).

Resumindo: esta é uma geração que não só não tem direitos como nem sequer tem instrumentos conceptuais, políticos ou estéticos para os reivindicar de um modo que seja levado a sério – mas a consciência de uma identidade, por mais irónica que seja, já é um bom começo.

*

Por outro lado – e por falar em direitos –, houve quem usasse a canção para, mais uma vez, deitar as culpas sobre os “direitos adquiridos”, essencialmente culpando uma geração de trabalhadores pelos problemas da seguinte. Mas, tal como referi num texto anterior, esta acusação não faz muito sentido, tendo em conta que, em bastantes ocasiões, são os pais – a suposta “geração espoliadora” – que são obrigados a sustentar os custos tanto dos estudos como da inserção profissional dos “espoliados”, tanto directamente como através do pagamento de impostos e de segurança social, recorrendo inclusive ao endividamento para o conseguirem.

A esta narrativa de culpabilização geracional falta convenientemente a figura do patrão, que simplesmente delira com a flexibilidade, a economia e o poder que o falso recibo verde garante (quem nem sequer tem um contrato pode ser despedido e pressionado com todo o à-vontade). Naturalmente, a opção ideológica da moda não é culpar este mau hábito, mas quem ainda vai tendo um bom contrato, argumentando que o dinheiro gasto a pagar decentemente a alguns impede que se pague decentemente a outros, sendo finalmente uma boa razão para deixar definitivamente de pagar decentemente a todos.

De resto, o estágio pouco ou nada remunerado não é uma coisa nova. Em áreas como o design ou a arquitectura já é praticado em larga escala desde há pelo menos vinte anos – quando entrei para a faculdade já ouvia histórias. Ou seja, acontecia mesmo em épocas de relativa abundância e de juros baixos, e a explicação para isso é simples: pagar salários decentes implica menos lucros. E se os trabalhadores tiverem um curso, uma qualificação que lhes pode assegurar um salário melhor, pode-se sempre dizer que o curso não ensinou nada, mas que isso pode ser resolvido trabalhando de graça por uns meses em troca dessa aprendizagem.

(O que nos traz àquela parte da canção onde se conclui que “para ser escravo é preciso estudar” – e cuja ironia foi interpretada por alguns comentadores mais literais como um apelo ao abandono dos estudos, quando tudo o que faz é descrever uma situação quotidianamente absurda.)

Filed under: Crítica, Cultura, Design, Economia, Estágios, Política,

11 Responses

  1. Excelente texto. Discordo apenas da referência ao “patrão”. Uma das causas da precarização do mercado de trabalho é exactamente a sua pouca flexibilidade. Quando contratar uma pessoa é quase um compromisso para a vida, independentemente do desempenho desta, é lógico que os “patrões” pensem uma, duas e três vezes antes de assinar um contrato.

    Obviamente não devemos aderir aos delírios neo-liberais, por vezes paradoxalmente reminiscentes do taylorismo, onde o trabalhador não era mais do que uma peça na engrenagem, mas é preciso ter consciência que enquanto os direitos não estiverem equilibrados com os deveres o mercado de trabalho português nunca funcionará correctamente.

  2. duarte carolino diz:

    Um bom texto sim senhor!
    no entanto quando alguns criticam a geração anterior, pelos males da actual não o estão a fazer de uma perspectiva “parental” antes referem-se a uma geração de responsáveis políticos/empresários, pós 25 de abril que criou o estado social, esquecendo-se que uma sociedade é uma comunidade de interdependências várias, de um todo e não apenas de alguns… e esta ausência traduz-se em irresponsabilidades várias, por exemplo, na quantidade de instituições de ensino superior/particular que abriram cursos sem aferir do seu grau de interesse público, e o estado assobiou para o lado. Eu sei que a ideia de legado, de testemunho, é demasiado careta para os dias de hoje mas continua a ter a sua pertinência! não estaremos a cavar um fosso demasiado grande entre um geração, nem direi rica antes remediada e outra pobre uma das primeiras na historia a empobrecer?

  3. duarte carolino diz:

    Esqueçi-me de responder ao Gustavo Pimenta:
    consulte a lei, Portugal é dos países na Europa onde é mais fácil despedir, esse argumento é repetido até a exaustão que até parece que é verdade…
    A opção pelos recibos verdes é pura avareza, muitas vezes nem é mais barato para a entidade patronal, é uma forma de não criar nenhum tipo de vinculo, de desequilibrar a relação laboral entre as partes, de o poder ficar apenas de um dos lados, permitindo descartar esta pessoa e passar para a próxima… e isto não é de todo equilibrar direitos com deveres, é pura exploração

  4. Caro Duarte,

    Retribuo o conselho: consulte a Lei e compare-a com a de outros países. Também não faltam comparativos de fontes credíveis para corroborar o que afirmei. Aproveite e compare a nossa produtividade com esses mesmos países. Ah… e já agora a evolução da taxa de desemprego.

  5. duarte carolino diz:

    Gustavo,

    atente no seguinte: o único reparo que os nossos parceiros europeus nos fizerem até há pouco foi: os despedimentos em Portugal são caros! o que é que o governo fez? torno-os mais baratos… não falaram na famigerada dificuldade em despedir trabalhadores, nem na idade da reforma em que Portugal foi dos primeiros países a alterar, aumentando os anos de trabalho.

    Desta forma e encerrando aqui o meu contributo para a discussão do tema, que recordo era a música dos Deolinda, não chega repetir os argumentos de sempre porque eles não ganham eficácia através da repetição, infelizmente os problemas são bem mais complicados…

  6. Paula Tavares diz:

    Boa Mário!

  7. Joana Lessa diz:

    Certíssimo!!

  8. […] e com a América de Bush, aqui em Portugal o momento-chave foi a elevação da música irónica dos Deolinda a um hino não-irónico da precariedade, mostrando que ainda há esperança, mas que depende […]

  9. […] que o estágio só começou a ser publicamente mal visto em 2011, com a música dos Deolinda e o nascimento da Geração à Rasca. De repente, percebia-se que o estágio já não era um intervalo entre a escola e o emprego, um […]

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