The Ressabiator

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Se não podes pô-los a pensar uma vez, podes pô-los a pensar duas vezes

Logos, Estúdios e Agências

O caso dos logotipos levantou alguns temas recorrentes no design de comunicação. Um deles é a competição entre os estúdios de design e as agências de marketing.

Nos últimos anos, ocorreu uma tendência no design para o “pandesignismo”, a convicção de que o design é tudo e está em todo lado desde sempre e para sempre. É por definição uma visão a-histórica do design, que passa a ser uma constante eterna, e cuja história se limita aos “acidentes” externos — quem fez o objecto, quem o encomendou, o contexto em que foi feito e com que tecnologia.

Chega a ser refrescante quando surgem visões divergentes, que quebram esta mundivisão. Beatriz Casais, investigadora em marketing, criticou, num artigo do Público, a identidade do Studio Eduardo Aires, interrogando-se se não passa “de um simples exercício de design” ou se foi feito um processo de branding, integrando no processo de criação os residentes e os stakeholders.

Desde o seu começo, o design gráfico rivaliza com o marketing.  Foi uma rivalidade marcante ao ponto de definir a identidade disciplinar do design. A agência de publicidade assentava o seu processo em estudos de mercado, métodos de inquérito estatístico, associados a interpretações ajudadas pela psicologia, antropologia, e outras disciplinas. O estúdio de design assentava numa aplicação rigorosa, mas criativa, de princípios da forma tidos como universais e de uma ética centrada na relação com a figura do cliente. Enquanto a agência se relacionava com o público por inquéritos a amostras de população, o design fazia isso através da universalidade dos princípios.

Não se trata de uma estar mais certa ou errada do que a outra. Tratava-se evidentemente de especializações, cada uma com funções parcialmente sobrepostas, mas distintas.

Cada uma tem problemas. Do lado do design, os princípios revelam-se não muito universais. Do lado do marketing, a amostra de público, tende a devolver a identidade da maioria, reforçando-a e “esquecendo” minorias.

(Continua)

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Democracia e Design



(Continua do post anterior)

2. Por a democracia ser fundada na discussão, é que me parece contraditório argumentar que a decisão de Montenegro é má porque este logotipo e o próprio design estão acima do gosto ou da opinião.

Nunca concordei com a ideia de que o design está acima do gosto ou da opinião. O que fica do design, retirando o gosto e a opinião, é competência técnica e convenção formal.

É sintomático que só se consiga defender o logo do Studio Eduardo Aires invocando o rigor do seu manual de identidade, a sua capacidade de adaptação à internet, ou atirando que a identidade anterior não imprime bem em formatos reduzidos. Revela que aquilo que o novo sistema transmite é, acima de tudo, aquilo que Johanna Drucker e Emily McVarish chamavam a sua própria “logocidade”. O que se comunica, por via da redução geométrica, é apenas um conceito autorreferencial de marca e de design. Comunica-se a si mesma.

É uma ideia modernista de identidade que teve o seu tempo histórico. Por outras palavras, é gosto. A ideia de que o Estado deve ser representado por uma identidade gráfica é muito recente. Ou seja, constitui uma opinião que coabita com outras.

Assumir que o design está acima do gosto e da opinião é dar a entender que, mesmo entre designers, há uma ideia única e estabelecida do que constitui qualidade. Não é de todo verdade.

Uma das razões pelas quais quase não existe crítica de design é a incapacidade interna para lidar com o gosto e com a opinião. Sem isso, ao pedir crítica, o que se pede realmente é promoção.

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Ainda sobre o logotipo da República.

O assunto de que tratarei neste post diz respeito aos designers e à sua postura em democracia.

1. Não critico esta mudança de identidade porque se trata de algo feito por um designer, e não por uma agência de publicidade ou um amador. A questão deveria estar acima de interesses corporativos.

Defenderia o mesmo caso o seu autor fosse um publicitário, um arquitecto, um pintor ou um amador a usar o Paint. É inadmissível em democracia que se ceda ou se legitime pressões violentas. O que interessa em democracia é a discussão livre e inclusão.

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Violência e design

Como já disse num post anterior, abandonar a última versão do logotipo da República e voltar à versão anterior é uma decisão má. Não é uma questão económica ou estética. É uma questão ética que ultrapassa o design.

Fizeram-se ameaças à integridade do designer que criou o logotipo. Essa violência não foi arbitrária. Sustentou-se numa campanha de comunicação organizada pela extrema-direita, com vídeos bem produzidos nas redes sociais. O objectivo era provocar indignação fazendo da nova identidade um ataque à identidade nacional. Montenegro legitimou esses pontos de vista, consagrando-os como promessa eleitoral que pôs imediatamente em prática.

O cerne do problema não é a economia ou a estética. Ultrapassa o design. Tem que ver com legitimar várias formas de violência como meio de intervenção política — que deveriam ser incompatíveis com uma democracia.

Não me parece eficaz, ou certeiro, tratar este assunto sob o prisma de ser ou não bom design. Ou progresso contra retrocesso. A questão central é a legitimação da violência.

É claro que há outras questões, que dizem sobretudo respeito aos designers — por exemplo, a invocação acrítica do “bom design” ou do design como necessariamente progressista. Comentarei isso em outros posts. 

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Sobre mudar-se outra vez para o logo antigo da República

É uma péssima decisão. Dá a entender que a imagem gráfica do estado fica sujeita aos diferentes governos. Pior: legitima os ataques violentos que o seu designer sofreu. Dá a entender que o seu trabalho não é competente. Por criticável que seja, é com toda a certeza, um trabalho sério.

Cede e legítima sentimentos nacionalistas cujo único propósito é provocar emoções agressivas.

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20 anos de Ressabiator

Faz hoje vinte anos, escrevi o meu primeiro post de blogue no Ressabiator. Não é exagero dizer que mudou a minha vida.

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Looking at Me, Isabella Rossellini

É um livro de fotografias. Foi, portanto, uma leitura breve, mas inesperadamente interessante. Estamos habituados a olhar para as fotografias do ponto de vista do fotógrafo, e não de quem é fotografado. Rossellini faz precisamente o que o título anuncia: olha para fotos de si.

A introdução esboça a genealogia de uma família dedicada à imagem: Roberto Rossellini, Ingrid Bergman, o seu namorado Robert Capa, mas também o seu avô materno fotógrafo e o seu avô paterno que fundou a primeira sala de cinema italiana. Ela própria se assume como uma espécie de imagem viva da sua mãe. 

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Werner Herzog: Every Man For Himself And God Against All

Nem sei bem o que acabei de ler. É hipnótico. Literalmente. Tem um capítulo dedicado à maneira como Herzog afinou a sua famosa voz através da prática do hipnotismo, que aprendeu para realizar um filme onde todos os actores estavam hipnotizados. É uma memória organizada por temas mas também cronológica embora de um modo onde a infância já anuncia o futuro como se fossem flashforwards. O resultado é uma mitologia pessoal, uma cosmogonia de um homem só, onde se cruzam operas, doenças, desastres, assaltos, todo o tipo de famosos e infames — Bruce Chatwin, Mick Jagger, Oliver Sacks, Tom Cruise e The Mandalorian. No meio da torrente de filmes que fez, recorrem as histórias sobre Fitzcarraldo e Aguirre. Tem reflexões bastante interessantes sobre a natureza da verdade e da mentira. Todo o livro parece balançar entre uma e outra e ao mesmo tempo sendo absolutamente honesto. Herzog fala da verdade como um processo, e de como a «ecstatic truth» é preferível às outras. Este livro é uma grande demonstração disso.

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20 anos de Ressabiator: exposições

Design: Márcia Novais

A escrita do blogue também me levou a fazer exposições. Todas se centraram sobre publicações e edições. Destaco as Páginas Inquietas, que fiz com a Susana Gaudêncio, sobre publicações políticas. Gostei também de fazer A Biblioteca na Biblioteca, colaborando com o Ricardo Nicolau em Serralves.

Uma exposição é um modo bastante interessante de pensar criticamente sobre um conjunto de objectos. Nas melhores ocasiões, consegue-se construir esse pensamento dialecticamente com o público.

A Força da Forma, feita durante a Porto Design Biennale ’19, mudou o meu modo de pensar o design português. Comecei a evitar as abordagens centradas em designers e objectos individuais e a vê-los como etapas em cadeias de influência.

Livro da exposição. Design: Rui Silva

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20 anos de Ressabiator: conferências

O blogue também me levou a participar em todo o tipo de conferências. Tal como com a escrita, interessaram-me pelo seu carácter de intervenção pública.

Perdi-lhes a conta, mas tenho conferências favoritas. As que mais gostei foram as do ciclo de seis que dei mensalmente a convite do Miguel Wandschneider na Culturgest de Lisboa, entre 2011 e 2012. Foi como preparar e dar uma cadeira em público, sem qualquer das obrigações habituais (avaliação, burocracia, etc.) Aproveito para sublinhar que Wandschneider foi uma figura incontornável da presença em Portugal de um movimento de edição ligado à Holanda, às Roma Publications e à Dot Dot Dot. Foi enorme a influência deste curador, directa e indirecta, sobre  o design português.

Também gostei das conferências que preparei sobre photobooks infantis, pela qual agradeço em especial ao David Gueniot. Começou um novo ramo de interesse para mim. E a conferência sobre o Chris Marker que dei a pedido da Márcia Novais. Ambas estão recolhidas em versão escrita no livro “O Design que o Design Não Vê”.

©Foto: Susana Pomba

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20 anos de Ressabiator: tendências


Não acredito que o design seja ou deva ser uma disciplina uniforme. Num dado momento ou local, há sempre interpretações e práticas muito distintas do que deve ser o design. Já envelheci o suficiente para ver como tudo muda. E muito.

Os gostos mudam, as tecnologias mudam, as identidades mudam, o design muda. Há tendências não apenas nas formas e nas cores, mas também no pensamento e na ética. Surpreendentemente para mim, muitos designers veem a própria ideia de tendência como má – criticam o que chamam “trends”.

Tenho consciência que ao começar a escrever num blogue fiz parte de uma tendência. Há vinte anos, tecnologia e cultura criaram a oportunidade para pessoas como eu desenvolverem um discurso público.

Também sei que tenho o meu gosto e as minhas filiações. Durante os últimos vinte anos, interessei-me acima de tudo por edição no contexto do design. Comecei por influência de revistas como a McSweeney’s ou a Dot Dot Dot. O blogue esteve para ser uma publicação deste género.

Este interesse teve ecos nas minhas aulas. Comecei por ensinar paginação, mas depressa percebi que não chegava. Foi-me atribuída uma cadeira (já nem sei em que ano) onde se esperava que os alunos fizessem investigação em design. Porque não fazer também investigação através do design, usando para isso a edição?

Por outro lado, também tentei desenvolver uma alternativa ao mau hábito de formar alunos para serem estagiários. Era esse o “produto” final típico dos cursos de design clássicos. Assumia-se que o aluno saía da escola e só seria realmente um designer depois de passar por um estágio qualquer.

O discurso neoliberal do pós-Bolonha parecia-me contraditório no sentido de, ao mesmo tempo, promover o empreendedorismo dos alunos, enquanto os condenava ao estágio. Parecia-me que a melhor maneira de ensinar autonomia e agência aos alunos não era através da transposição de modelos de estúdio para a escola. Não queria fazer de mim um um patrão e do aluno um estagiário, mas de ensinar os alunos a tomarem decisões através da tomada de decisões. Eu deveria ajudá-los a tomarem decisões informadas.

Perguntei-me também quais são as decisões específicas que um designer deve saber tomar para ser autónomo. Demasiadas vezes assume-se que essas decisões dizem respeito a saber fazer orçamentos, cuidar de assuntos fiscais, ou perceber de gestão. Mas isso são competências relativamente genéricas. O que é uma decisão de design?

Dentro do campo da edição, percebi que tinha de avançar acima do nível da paginação e pôr os estudantes a tomarem decisões sobre a estrutura da publicação e a articulação dos seus conteúdos, fossem eles visuais ou textuais.

Não é um trabalho especulativo. Muitos dos designers mais considerados em Portugal das últimas duas décadas fazem este tipo de trabalho e tomam este tipo de decisões — Márcia Novai, Rui Silva, Inês Melo, Maria João Macedo, Daiana Luca ou Isabel Duarte (todos passaram pelas minhas aulas). Ao nivel internacional, a edição foi uma área florescente no design nessas décadas. O design português foi várias vezes premiado nesse âmbito.

Nem sempre foi um esforço compreendido. Por várias vezes, tratou-se este trabalho como sendo mero design editorial (ou seja, paginação e tipografia). Não entendo o design editorial na sua aceção clássica e limitada.

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20 anos de Ressabiator: por outras histórias do design, em Portugal e não só

Desde 2016, aumentei a minha intervenção em áreas como o antirracismo, o feminismo e os direitos humanos. Participei em projectos e conferências. Porém, a sensação que tinha era quase sempre a de ter uma vida cívica dedicada a estes assuntos, separada de outra vida onde me dedicava ao design, ao seu ensino e à sua história.

Comecei a usar bibliografia preferencialmente produzida por mulheres ou pessoas de minorias historicamente oprimidas. Muitos dos projectos de intervenção onde participei nos últimos anos foram geridos e constituídos principalmente por mulheres.

A área da história do design português, onde comecei a trabalhar por volta de 2008 parece-me cada vez mais frustrante. Os poucos raios de luz são iniciativas como as de Isabel Duarte e Olinda Martins, focados em trazer à superfície designers mulheres, as de Nuno Coelho ou Ecce Canli, estas no sentido de descolonizar a história do design.

Estas novas histórias davam a volta a velhos formatos e documentos. A história do design assenta sobretudo em dois grandes formatos: a biografia dos praticantes exemplares e documentos onde texto e imagem se combinam. A biografia clássica é a de homens brancos e europeus. Os documentos são principalmente em cartazes, capas de livros, exposições, logotipos. As novas histórias propõem novas protagonistas para novas biografias, individuais e colectivas, olham para os velhos formatos procurando vestígios de histórias suprimidas, de estereótipos raciais e de género. Procuram o texto gráfico em lugares menosprezados.

Porém, parece-me que há uma área invisível mesmo no centro do design. Quando se assume, numa história, que algo é design gráfico porque tem letras ou até simples signos, está-se a terraplanar todo o contexto em que esses objectos foram produzidos. Dizer que um caçador do neolítico ou que um fabricante de moedas da Grécia clássica praticavam design apenas porque gravavam signos e letras é esquecer que o design foi criado num contexto muito específico. Não é acidental que tenha surgido em Inglaterra durante o apogeu do seu império colonial. Os primeiros designers ingleses tinham consciência disso. A Gramática do Ornamento, de Owen Jones, um livro fundador da disciplina, era um catálogo ordenado de motivos recolhidos por todo o mundo e em vários períodos históricos reduzidos a uma linguagem comum por via da metodologia que era o design.

Em suma, acredito que no centro do design, as suas decisões formais mais centrais, e habitualmente justificadas pela percepção, psicologia e ergonomia são, na verdade, ditadas por questões culturais e políticas europeias. O trabalho de Jacques Rancière foi, para mim, fundamental para perceber que a organização da percepção é um mecanismo poderoso de hierarquização política. A fronteira entre texto e imagem é usada, desde há muito, para separar o racional do irracional, o civilizado do selvagem, o Eu do Outro, o masculino do feminino.

É por isso que me dedico cada vez mais a uma história do design que não é a dos praticantes, objectos, instituições ou técnicas, mas do próprio design como conceito e das ideias que lhe são centrais.

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20 anos de Ressabiator: Dois livros, Duas vezes

A escrita no blogue levou-me à escrita de livros. Mostro estes, o Design em Tempos de Crise (Braço de Ferro, 2009) e O Design que o Design Não Vê (Orfeu negro, 2018), porque foram os únicos que escrevi que chegaram à segunda edição.

Aproveito para mandar um abraço à Isabel Carvalho e ao Pedro Nora (que eram a Braço de Ferro) e à Carla, Patrícia e Rui (do lado da Orfeu).

O «Design em Tempos de Crise» foi uma recolha de textos do blogue. O «Design que o Design Não vê» era para ser, mas acabou por ser sobretudo uma recolha de textos de longo fôlego publicados em revistas e livros.

Paradoxalmente, na era da internet não é fácil encontrar textos antigos. Nos blogues ou no facebook, são enterrados pelos mais recentes, perdidos nas timelines. Os textos impressos, pior ainda.

O ensaio que deu o nome ao «Design que o Design Não Vê» (escrito para o livro) marcou não uma, mas duas viragens na minha escrita. Nos primeiros tempos do blogue, falei sobretudo de questões políticas do design enquanto trabalho. Com o tempo, virei-me também para as questões de raça e de género — era esse o design que o design não via.

Porém, comecei-me a aperceber que a própria visualidade no design é problemática. Há uma relação muito peculiar com a visibilidade (“o melhor design é invisível) e com a própria imagem (é muito comum ler e ouvir designer a menosprezarem algo porque é só imagem).

É daí que vem o nome da minha conta de instagram e do meu blogue mais focado na imagem: unseen by design.

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Coisas Avulsas


Em 2003, quando passaram o Star Wars na televisão chilena, anúncios de cerveja foram incluídos dentro da acção do filme. George Lucas não achou piada.

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Midjourney

Tenho feito experiências com o Midjourney AI que publico no instagram e no facebook. Este é um Tintin.

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Coisas avulsas

Que fez Alexander Graham Bell depois de ter inventado o telefone? Gigantescos papagaios de papel geométricos (via Public Domain Review)

Nem cinco minutos depois de aprender isto, fiquei a saber, através da conta de instagram do Dicionário Merriam Webster, que “decibel” é uma homenagem a Bell. Escreve-se dB porque a maiúscula indica um nome próprio.

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20 anos: o Ressabiator na Universidade

Este mês marca os vinte anos do Ressabiator. Se fosse uma pessoa, e não um blogue, é possível que estivesse na universidade, a meio de uma licenciatura de três anos de Bolonha. Talvez um curso de Design.

A presença do Ressabiator na Universidade sempre foi frustrante. Nasceu de uma frustração: a ausência de um discurso público e cívico por parte dos designers. Abriu-me bastantes portas. Foi graças ao blogue que escrevi para livros e revistas. Dei conferências e aulas. A maioria delas foram feitas fora dos esquemas habituais com que se mede o sucesso das carreiras. Nos questionários de avaliação, quando consigo incluir a minha escrita, é quase sempre na categoria de «Outro/as:» (ou equivalente).

Sou citado em todo o tipo de papers, dissertações e teses. Sabe bem. A frustração é sempre o «Outros/as».

Deixei há muito de levar a sério certas ideias grandiloquentes do pós-Bolonha, nomeadamente a de fazer a universidade sair da sua torre de marfim e entrar pela sociedade e economia adentro. Já fazia isso quando mal havia centros de investigação em Design ou projectos financiados.

Não se recebe principescamente a escrever sobre design em Portugal, mas pode-se realmente ser pago por isso. É um vencimento tão incerto como os que se recebem via investigação universitária, mas tem a vantagem de garantir alguma liberdade.

O que se espera de um investigador é sobretudo que passe semanas ou meses a preparar propostas para concurso. Chega-se ao fim convencido que se deveria receber algum prémio só por completar a papelada toda. Há pessoas que fazem isso muito bem. Com elas já me candidatei a projetos e, às vezes, ganhámos. Faz parte desta vida.

No meu caso, a parte crua, desprotegida, não da minha carreira, mas do meu pensamento é isto. Literalmente isto. No vosso caso, que me leem, a parte concreta são os pixeis no vosso ecrã, que encena os conteúdos de uma base de dados num servidor. No meu, escrevo isto numa poltrona amarela da Ikea virada de costas para a janela, porque o contraluz me dá dores de cabeça se for prolongado. É sexta-feira e posso escrever com algum vagar porque as filhas foram para a escolinha e estou sozinho em casa. Quando acabar de publicar isto, lerei o trabalho de mestrandos. Prepararei a aula de História do Design da próxima segunda-feira. Depois lerei as leituras «selvagens», que não têm utilidade imediata (um livro de design de David Reinfurt e talvez umas bicadas numa autobiografia de Werner Herzog). À tarde, ainda não sei.

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20 anos de Ressabiator: Inquietação cívica

O Ressabiator, o meu blog, faz vinte anos no fim do mês. Não farei nenhuma festa.

Postarei alguns textos sobre o blog. Parece-me a melhor maneira de celebrar: posts celebram-se com post, a crítica festeja-se criticando.

Comecei a escrever online em 2004. No design escrevia-se pouco e só raramente em público. Havia uma sofreguidão de comunidade. Vinham pessoas de autocarro de Lisboa para verem as conferências Personal Views organizadas por Andrew Howard na Esad de Matosinhos. A Experimenta era também um gigantesco pretexto para encontrar pessoas e ver gente a falar e a pensar sobre design.

Comecei a escrever pela oportunidade de publicar sem gastar dinheiro. Sempre se exigiu que o design tivesse um papel na sociedade em geral. Porém, quando chega a ocasião mais simples e acessível de o fazer, poucos o fazem.

Perante meios gratuitos, imediatos, e de grande alcance, a escolha é quase sempre subir a barra. Escrever em público, sim, mas só se for num jornal. E se for num jornal, tem de ser uma coluna regular. E se for uma coluna regular, é porque não é um livro. E se não for um livro é porque não é um paper. E se não for um paper é porque não é numa journal indexado no scopus. E se não é open access? E se não financiado? E se não gera valor? E se não é relevante para a comunidade?

E assim por diante.

A melhor maneira de participar num debate público alargado é estar disponível para nele participar. Ter a paciência para ser insultado, mal-entendido, treslido. E voltar depois do almoço para mais.

Não vejo, nem nunca vi, a vida académica como um impeditivo de cumprir o papel de intelectual público. Uma das minhas referências, quando comecei foi Edward W. Said, que proferiu umas belíssimas conferências sobre o que é ser intelectual público.

As pessoas que mais respeito por essa bitola, são as que, para além do emprego, para além do doutoramento, para além do paper, intervêm, dão o passo de fazer mais do que o pedido. De servir a comunidade com generosidade, mas também com um tipo de generosidade menos reconhecido como tal que é a inquietação cívica.

Alguns exemplos, no design e não só, sem uma ordem em particular: as minhas colegas Maria José Goulão e Joana Baptista Costa, o Nelson Zagalo, o Frederico Duarte e a Vera Sachetti, o Guilherme Sousa, o André Barata, a Olinda Martins e a Isabel Duarte. Não é uma lista exaustiva.

Há mais pessoas que se levantam quando são chamadas. Ou, melhor, que se levantam quando já ninguém sequer chama – que é o caso frequente do design.

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Por ocasião da morte de António-Pedro Vasconcelos, uma reflexão sobre o cartaz de Perdido por Cem.

Sobre António-Pedro Vasconcelos: o objecto que me vem sempre à cabeça é este poster. Andei por casa à procura do sítio onde o vi pela primeira vez, o álbum 60 Cartazes do Cinema Português, editado pela Cinemateca. Felizmente, dei com um post no facebook do Luís Manuel Gaspar a identificar o autor, Guilherme Lopes Alves.

O livro marcou-me. Foi uma espécie de consciência do design antes de seguir design. Eu, como muita gente, aspirava àquela coisa muito portuguesa da cinéfilia como uma espécie de catolicismo modernizado – veja-se João Benard da Costa, ou Oliveira, que penso ter sido até posto a fazer de padre, salvo erro por João Botelho. Para resumir, os cartazes funcionavam como pinturas religiosas ou aqueles santinhos de trazer no bolso. O cinema ainda era uma experiência aurática, religiosa, no sentido que Benjamin lhe dava. Sem VHS, sem DVDs, via-se num sítio, no cinema, em ambiente de recolhimento. Era um paradoxo. Ou antes, um mistério no sentido católico: um objecto industrial que podia ser vivido como uma cerimónia.

Os cartazes, tal como os livros da cinemateca, eram imagens, no tal sentido católico: não eram a “coisa”, nem podiam ser, mas funcionavam como lembranças, como placeholders, do divino. Neste caso, eram imagens de um outro tipo de imagens. Objectos criados para conjurar a experiência de sombras vistas no escuro por uns momentos.

Vi outros filmes de APV, nunca vi Perdido por Cem. Só lhe conheço o cartaz. É um objecto de design muito bom. Perfeito mas não perfeitinho. Funda-se no desenho, mas não é apenas ilustração. É realmente design num sentido antigo de ser um todo de texto e imagem. (Se calhar seria justo chamar-lhe até desenho, na acepção em que aqui em Portugal se chamava desenho ao design.)

O desenho, o traço, é o que começa por unir tudo, as letras e a imagem. É muito boa, aquela transição do retrato para a letra mono-espaçada do título, para aquela letra desenhada de terminações encaracoladas. O negrito e o ritmo regular da mono-espaçada (ou letra de máquina de escrever, para quem não precisa de saber estes nomes) ligam-se à espessura do traço do retrato. Diluem um pouco o peso dos negros mais escuros do topo da imagem. A letra de máquina de escrever dá a entender noticia, facto, escrita mecânica, profissional. A letra encaracolada dos créditos ecoa os caracóis da figura. A espessura cada vez mais fina conduz o olhar pela folha abaixo a terminar na citação, introdução, apresentação do personagem. É um percurso em z que começa na bala, passa pela cabeça e se esvai em vermelho no fundo da folha. Quase nem é preciso filme.

Que falta dizer?

É um tipo de desenho muito gráfico que estava em voga na época, arredondado e muito assente em superfícies postas em contraste por vazios e texturas. Era comum no meio publicitário, mas também se via gente das artes e da arquitectura a desenhar assim. Era o equivalente em desenho da Pop e do Psicadelismo. A Pop vê-se neste poster na ideia gráfica da carta de jogar. Para além da composição, pela simetria falsa da figura com a silhueta do texto, o pendor decorativo do desenho e a escolha do preto com destaques vermelhos dão a entender carta de jogar. Não forçam a comparação, reconstroem-na.

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A fronteira entre texto e imagem

Dizia no post anterior que o poder no design está ligado a uma visualidade negativa (“o melhor design é invisível”).

Muito se tem falado do poder do design, em geral ligando esse poder a outros poderes (o poder político, a democracia, a ditadura, o patriarcado, o racismo).

Mas há um poder específico ao design gráfico. É um poder ligado à administração de um fronteira do sensível: a que separa o visível do legível.

Quando o designer invoca a legibilidade como imperativo não está só a dizer que certos objectos devem poder ser lidos facilmente, mas a afirmar a supremacia do legível sobre o visível.

Garantir a legibilidade não é polir e afinar algo que já é um texto, mas é exigir que seja um texto ou como um texto. Trata-se de marcá-lo como um texto.

Muita da história do design gráfico avança num ciclo: uma nova tecnologia vem baralhar as fronteiras entre texto e imagem (a litografia, a fotocomposição, os computadores). A estes períodos de indefinição segue-se sempre uma viragem textual, um novo tradicionalismo que se traduz numa preocupação pela legibilidade.

A actual viragem tipográfica que se seguiu às Legibility Wars é talvez o mais longo destes períodos conservadores. Design gráfico é tido como sinónimo de tipografia. O advento da Inteligência Artificial, que gera texto como imagem promete ser um novo abalo.

(imagem: pedi ao Dall-e para gerar a imagem de um poster integrado na paisagem das Festas da Senhora da Agonia em Lamego, que não sei se existem.)

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Mário Moura

Mário Moura, blogger, conferencista, crítico.

Autor do livro O Design que o Design Não Vê (Orfeu Negro, 2018). Parte dos seus textos foram recolhidos no livro Design em Tempos de Crise (Braço de Ferro, 2009). A sua tese de doutoramento trata da autoria no design.

Dá aulas na FBAUP (História e Crítica do Design Tipografia, Edição) e pertence ao Centro de Investigação i2ads.

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