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Se não podes pô-los a pensar uma vez, podes pô-los a pensar duas vezes

Nem o desenho ilustra, nem o texto é legenda

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Uma boa discussão: ontem o Expresso publicou um texto de opinião contra a co-adopção, da autoria de Gentil Martins, a acompanhá-lo o desenho acima, de Cristina Sampaio. Se o texto assegurava que a co-adopção fazia diferença, a ilustração assegurava que não. Naturalmente, isto deu discussão na tuitósfera. Que era mau, que a ilustração devia bater certo com o texto. Que a ilustradora tinha direito à sua opinião. Que e se fosse ao contrário um texto a favor da co-adopção ilustrado por um ilustrador contra?

O que esta polémica demonstra é a ética subjacente ao trabalho do ilustrador e em particular a sua natureza argumentativa. No caso dos jornais portugueses de grande tiragem, a ilustração cumpre a função de uma manchete visual. Encontrar uma ilustração a contradizer a notícia é como encontrar um título a afirmar o oposto do que é noticiado (é relativamente comum e também polémico). portanto, assume-se que o ilustrador deve ilustrar. Pelo exemplo contrário, é permitida total liberdade ao cartoonista, que produz imagens auto-contidas com ou sem texto de legenda.

Em tradições como a americana ou a inglesa é comum o desenhador jornalístico (evito aqui as expressões ilustrador ou cartoonista) ter o estatuto de jornalista, o que não resolve nada quando se considera que o comentário ou a opinião não são a mesma coisa que a reportagem – não se trata de apresentar o melhor possível factos, mas de os comentar.

Neste caso, o texto é de opinião mas espera-se que a sua ilustração seja uma representação factual do seu conteúdo e não um comentário (ou seja, jornalismo). Não sei se é costume aquela ilustradora ilustrar aquele espaço ou aquele comentador. Em todo o caso, foi defrontada com a obrigação de ilustrar com neutralidade uma opinião com a qual não concorda. Poderia recusar e talvez aparecesse um textinho a explicar a sua opção. É a solução habitual que parece um pouco injusta para quem acredita em exprimir-se por imagens: a ilustradora fica condenada a dizer que não por escrito. Tal como está, a sua recusa ou mais exactamente a sua discordância é evidente. O seu desenho deixa de ser ilustração e passa a ser evidentemente a opinião que é ou deveria ser.

Penso que no fim se fica a ganhar. Mais opinião e mais discussão é quase sempre melhor. Uma ilustração a discutir com o seu texto é talvez o melhor sinal disso.

Infelizmente, também ilustra uma certa hierarquização acéfala do jornalismo, onde se espera colaboração onde sobrevive apenas a pressa e a economia. Uma das experiências mais interessantes dos últimos anos foi o Público dirigido por Miguel Gomes, onde notícia e ficção, desenho e ilustração se baralhavam, obrigando o leitor a pensar bastante antes de tirar as suas conclusões. Ler e ver sem pensar não anda muito longe do preconceito.

(acrescentando e resumindo, já depois do texto ter sido publicado: há evidentemente protocolos e deontologia sobre estas relações entre imagem e texto, mal seria que não fossem postos em causa de vez em quando. Não se trata de induzir o leitor em erro mas de o desprevenir no acto do informar, coisa que a melhor imprensa costuma fazer.)

Filed under: Crítica

5 Responses

  1. CR diz:

    Lendo o texto, parece-me que quem realmente deu a sua opinião foi Gentil Martins, que inventou, escreveu e defendeu uma enormidade de idiotices (gravíssimo para um membro da comunidade científica). Mas bem, há idiotas em todo o lado! Felizmente a Cristina Sampaio não o é, e ilustrou o artigo com rigor científico, porque o assunto não é brincadeira nenhuma.

    • Por princípio, assumo que qualquer um dos dois disse a sua opinião, concordando ou não com ela.Tentei construir o texto apenas sobre a ética da relação entre a ilustração e a crónica e não sobre o seu conteúdo. Sabendo que isso é irrelevante para o assunto do meu texto, resta dizer que concordo com a posição da ilustradora.

      • CR diz:

        *Lendo o texto do Gentil Martins. 😉

        A discussão que se tem gerado em torno deste artigo tem a ver, parece-me, com regras jornalísticas, em que num jornal a ilustração não deve contradizer o artigo, que se considera, à partida, como verdadeiro (relacta factos). No entanto, neste caso, o texto trata-se de uma opinião (baseada em falsidades, sublinhe-se), pelo que comentei o anterior. É que, Gentil Martins, argumenta que casais homossexuais são “famílias desestruturadas e prejudiciais ao normal desenvolvimento das crianças”, e achei que devia sublinhar isso. Sei que esta discussão está para além do assunto exposto por si, mas não resisti.

  2. […] propósito do caso da ilustração, ocorreu-me uma forma mais simples de expor o mesmo argumento do texto anterior: imaginem que a […]

  3. Tiago Leal diz:

    Parece-me que a ilustradora, sendo bastante conhecida no meio e tendo (provavelmente) uma posição forte e bem definida sobre o assunto, temeu que pudessem confundir uma ilustração condicente com o texto com a sua verdadeira opinião. Não sei até que ponto, o autor (e não estou a discutir a validade da sua opinião) não deveria ser chamado, neste e noutros casos, a dar o seu acordo relativamente à ilustração que acompanha o seu texto. Porque é o texto que motiva a ilustração, e não o contrário.
    Mas é um assunto muito pertinente e uma discussão muito interessante.

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