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Se não podes pô-los a pensar uma vez, podes pô-los a pensar duas vezes

Quem és tu?

Uma das questões mais frequentes com as quais um crítico se confronta é a da sua legitimidade para criticar. Alguém nos pergunta: “Quem és tu para escrever isto?” No meu caso, a resposta costuma ser “Ninguém.” Há quem acredite, pelo contrário, que para dar uma opinião em público são necessários todo o tipo de pré-requisitos: um curso, um currículo, ser alguém, enfim.

Eu não acredito nisso. O profissional mais experiente pode-se enganar sobre o assunto da sua especialidade. É provável que não, mas ninguém é perfeito. Podemos aceitar a opinião de um especialista com base na fé que temos do conhecimento dele. Não precisamos de ver os factos ou mesmo a totalidade da argumentação que construiu a partir deles porque tirou um curso numa universidade, porque estudou o assunto durante anos, porque o praticou durante outros tantos anos. Mas aceitar uma opinião baseada na autoridade de quem a diz é como aceitar um cheque: só serve para alguma coisa se houver dinheiro no banco – ou seja, se a argumentação e os factos estiverem lá se precisarmos deles. Aquilo que conta no final é a qualidade da opinião e não a qualidade de quem a diz.

Mais ainda: a partir do mesmo conjunto de factos, especialistas distintos podem ter opiniões completamente diferentes e até antagónicas. Na arte isso é bastante comum, especialmente quando se tenta identificar o autor de uma obra anónima. Tem que se confiar no “olho” – uma mistura de experiência e de instinto que muitas vezes nem consegue ser justificada em voz alta (nada de particularmente científico ou definitivo, portanto). Mas o valor de uma obra de arte depende desta metodologia pouco fiável, e já houve quem quisesse resolver o problema de uma vez por todas recorrendo a técnicas de ciência forense. Há pouco tempo, identificou-se um Leonardo com base numa impressão digital do artista. No entanto, e como este artigo sugere, as coisas não são assim tão simples. Peter Paul Biro, o especialista que identificou o quadro, já esteve  várias vezes sob investigação por suspeita de falsificação de obras de arte; o aparelho que usa para identificar as impressões digitais é o único no mundo – não há maneira de verificar independentemente os resultados; os critérios que usa para a identificação de uma impressão digital não correspondem aos das autoridades legais. No final, o próprio Biro reconhece que avaliar uma impressão digital esborratada é menos uma certeza científica do que uma questão de instinto – de “olho”, portanto.

Descobriu-se também que Biro dava a sua opinião sobre quadros cuja venda o beneficiava directamente. Esta é uma daquelas ocasiões em que a identidade de quem fala pode determinar se aceitamos ou não aquilo que diz. No entanto, também aqui se trata de fé, embora negativa. Se alguém tem motivos para mentir ou distorcer os factos, isso não significa que o esteja a fazer. Aqui também a opinião deve, se possível, ser verificada.

Ajuda, é claro, que quem dá opinião faça uma declaração de interesses, sempre que isso seja pertinente. Se sabemos que a crítica de uma exposição foi feita pelo namorado da ou do artista, pelo dono da galeria, por um membro do conselho de administração do museu, isso não a torna à partida pior, mas obriga-nos a só a aceitar com um desconto muito generoso  de cartão jovem – no mundo da arte, é bastante comum ser juiz em causa própria, o que significa apenas que gosto e poder andam quase sempre de mãos dadas.

Filed under: Arte, Crítica, Cultura, Design

3 Responses

  1. carlos soares diz:

    Não que sejam precisas analogias, mas isto parece-me ser como na música, a coisa deve valer por si, pelo seu valor intrínseco. Claro que até aqui tudo parece consensual, no entanto, todos sabemos que a realidade não é bem assim e o modo como ouvimos (ou lemos) certas coisas têm a ver com a sua proveniência (caso contrário, muitas das vezes nem as leríamos ou não as leríamos com a mesma atenção duas vezes). Aliás quantas vezes voltamos a ouvir (ou ler) algo para tentar perceber melhor o que lá está ou o porquê de determinada opção sónica ou opinativa.

    Quanto à questão do CV e do lastro do opinador é algo incontornável (não deve é implicar ausência de julgamento crítico, mas isso é competência do público). Aliás os teus textos não existem no vácuo, fazem parte de um todo composto pelas tuas experiências, CV, gostos, etc. O ninguém não existe, com ou sem aspas!

  2. rui diz:

    É a história típica do artista que é filho ou neto de A, B ou C… e se uma dessas letras corresponder a várias quantias de dinheiro, reconhecimento público ou poder político, o indivíduo é de certeza muito bom naquilo que faz. E se o pai é um artista famoso, então sai ao pai.

    Neste caso e noutros, o crítico deve esvaziar todo um conjunto de pré-conceitos, analisar e criticar segundo um ponto de vista pessoal e, portanto, menos “genérico”. É claro que ter conhecimentos aprofundados daquilo que se está a argumentar conta bastante. Não estou a dizer que seja requisito essencial um doutoramento ou mestrado na área artística. Muitos críticos de arte actuais têm estudos nas áreas da gestão ou advocacia, ou outra área completamente distinta. O que conta é a sabedoria pessoal do crítico em questão e o seu dito autodidatismo. Muitos são os coleccionadores de obras de arte que, apaixonados pelos objectos que vão possuindo acabam por aprender sobre eles mais do que comuns historiadores de arte.

    Outra questão é o privilégio da liberdade de expressão, factor mais do que fundamental a uma boa crítica. Sendo ela externamente incontrolável, poderão surgir mil e uma ideias e argumentos relacionados com determinada temática, porque o crítico é também alguém. Alguém com as suas vivências, a sua forma de pensar e reflectir sobre as coisas.

  3. […] tu para escrever/falar sobre X ou Y?’. Pergunta esta que faz parte do título de um interessante post de Mário Moura, que critica o facto de as pessoas olharem para a questão de um ‘status’ ou […]

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