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Se não podes pô-los a pensar uma vez, podes pô-los a pensar duas vezes

O Design Público

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Quando estava a tirar o curso de design, lembro-me de ter discutido muitas vezes com os meus colegas e professores o logótipo de José de Guimarães para o Turismo de Portugal. Para nós, era uma humilhação ter sido um “pintor” e não um designer a conceber algo que, para todos os efeitos, simbolizava tanto a nossa identidade nacional como a bandeira ou o hino. De certa maneira, aquele logótipo representava o atraso e a ignorância nacionais em relação à nossa área, o design.

Porém, com o tempo, ocorreu-me que podia não se tratar só de atraso e de ignorância: muitas pessoas não confiariam de ânimo leve assuntos públicos a um designer, enquanto “um conceituado artista”, como José de Guimarães, pela sua autonomia em relação ao mundo empresarial, ao comércio e à indústria, podia representar de maneira mais consensual a identidade nacional, o Estado.

Ironicamente, a expressão “designer gráfico” surgiu porque era difícil a um empresário confiar a imagem da sua empresa a um “artista” – mesmo que “comercial”. No entanto, este rebranding não foi só cosmético; acabou por representar uma efectiva especialização dos designers gráficos na publicidade, indústria e serviços. Por esta razão, enquanto a arte é conotada com a esfera pública, o design é arrumado rotineiramente na esfera privada.

Entretanto, já se tornou comum a identidade nacional ser confiada a designers e publicitários e fala-se mesmo da “marca nacional” como uma actualização – no fundo, um rebranding – da identidade nacional. Porém, esta mudança não afectou apenas a imagem do Estado, mas a própria ideia de Estado – se neste momento é mais consensual um designer trabalhar a identidade de um país, é porque o conceito de Estado se modificou de alguma maneira.

Pensar o Estado com os mesmos mecanismos com que se promove uma empresa acaba por ser uma admissão tácita da inevitabilidade das politicas neo-liberais, que apregoam que o Estado se deve limitar a proteger os interesses privados – sobretudo de empresas – em vez de proteger a existência quer de serviços públicos, quer da própria esfera pública.

Mas como pode então o design servir o Estado sem contribuir – mesmo contra a sua vontade – para que este se transforme numa empresa? Seria tentador propor um rebranding do design, que o afastasse das suas conotações mercantis, mas seria talvez mais interessante um debranding do design. Seria possível então, finalmente, pensar o design como um modo de intervenção pública, que conseguisse colocar a ênfase do seu discurso tanto no Cliente como no Público.

Filed under: Ética, Burocracia, Crítica, Cultura, Design, Economia, Logos, Política, , , , ,

9 Responses

  1. «Mas como pode então o design servir o Estado sem contribuir – mesmo contra a sua vontade – para que este se transforme numa empresa?»

    Caro Mário Moura, vejo que ainda não está a par da última acção, em prol do design lusitano, efectuada pelo CPD… Senão teria lido que «foi apresentado a Durão Barroso um cenário das agressivas políticas de design das nações competitivas, acentuando a necessidade de existência de uma estratégia mais coerente a nível europeu» e que foi proposta «a criação de um forte mecanismo europeu para a construção das competências em design na Europa do séc. XXI, como estratégia complementar da performance de inovação europeia». Quer mais mercado? Mais mercado não é possível. Se o design (neste caso o CPD) pensa como uma empresa (pior, uma empresa almejando proteccionismos) como poderá ele contribuir para que o Estado não se transforme, também ele, numa?

    Quanto ao logótipo de José Guimarães, uma coisa é certa, o artista sumarizou perfeitamente a condição nacional. Um perpétuo afogamento…

  2. reactorblogue diz:

    Quer a intenção, quer o modo como ela está formulada – “a criação de um forte mecanismo europeu para a construção das competências em design na Europa do séc. XXI” – desperta-me o mais profundo receio. Esta “tecnocratização” do design – assim, à letra, a disciplina entendida como processo de construção de uma ordem técnica, normalizada e desumanizada – cresce à medida que o designer se assume como “agente ideológico” e, já não, como uma “agente utópico”. A atitude (a um tempo politicamente correcta e hipócrita) que pressupõe a acção do designer como “neutra” política e socialmente mais não faz do que, de uma forma não-assumida, servir um poder, alimentar um estado de coisas, que se diz desconhecer.

    (Excelente o “post” e o comentário do Carlos Vieira Reis)

  3. é distópico acreditar que possa ser possível a um artista separar as suas ideias das suas criações. no entanto, à um briefing que diz comunica ao designer como deve proceder durante a concepção do seu trabalho.
    o designer gráfico, a meu ver, neste caso não é mais que um intermediário entre aquilo que o governo idealizou e que pretende comunicar. isto é, o criativo deve focar o seu trabalho naquilo que o governo pretende e não naquilo em que as suas ideias políticas se baseiam.
    se tudo, defacto ocorrer como eu disse, não vejo qualquer problema num bloquista criar um cartaz para o PNR, ou o inverso.

  4. Em primeiro lugar, é sempre possível um designer recusar um briefing com base nas suas convicções políticas, tal como também é possível aceitá-lo independentemente das mesmas.

    Esta última opção assenta na ideia de que o exercício do design gráfico deve ser neutro; o designer pode ter as suas convicções politicas, mas deve esquecê-las enquanto trabalha. Esta “ética”, que não se limita ao design, é uma forma subtil de dizer que devemos escolher entre ter um emprego ou ter opiniões políticas.

    O acto de exercer uma profissão com neutralidade é dependente de factores políticos, económicos, religiosos, de design, de arquitectura (neste apecto, as análises de Michel Foucault são fundamentais, em particular o livro La Naissance de la Clinique).

    A ideia de neutralidade do design é por vezes comparada à neutralidade da medicina, mas a medicina é sempre exercida dentro de um enquadramento politico e económico. Por exemplo, exercer medicina num país com um serviço nacional de saúde bem desenvolvido e num pais onde o exercício da medicina foi privatizado são coisas bem distintas, que envolvem enquadramentos éticos de base bem diferentes. Se a neutralidade da medicina é politicamente determinada, a neutralidade do design não o será, também?

    Em segundo lugar, como pode – ou deve – um designer representar o Estado? Se um designer não pode exercer as suas opiniões politicas enquanto designer, como pode ele representar adequadamente um partido politico ou um Estado? Na minha opinião, a suposta neutralidade dos designers acaba por ser ela mesma ideológica. É uma representação do “centrão”, que é como quem diz da transformação da politica num acto administrativo e burocrático, onde as diferenças ideológicas são desvalorizadas.

  5. Caríssimos

    Só alguns pontos, adicionando-os ao óptimo post, e às boas intervenções que já foram feitas:

    – Utiliza-se o “neutro” como uma das grandes virtudes do designer neste momento. No entanto, o “neutro” é algo que paira sobre todos os designers, obrigando-os a escolhas por vezes indignas. Claro que o neutro aqui pode significar, o fazer um trabalho sobre ovos estrelados ou ovos cozidos, “mas eu gosto de ovos estrelados, portanto não faço os ovos cozidos, mas como sou “neutro” tenho, também, de fazer o dos ovos cozidos como se fazem ovos estrelados” (passo o humor). O que quero dizer é que não basta proferir que o “neutro” é bom ou mau, mas que definição ética é que lhe apresentamos, quando o colocamos como “virtude” de um designer. Virtude essa que é massivamente ensinada nas escolas.

    – Mais: o facto de um designer se escusar a ter uma opinião, ou, por outras palavras, ter uma atitude chamada de “neutra”, com o argumento de que “o designer tem de saber trabalhar tanto para uns como para outros”, é apagar o indivíduo-designer, tornando-o num mero meio, algo de intermédio, i.e., uma ferramenta nas mãos de outrem.

    – Uma outra questão, é da respectiva ideologia de uma imagem “marca-nacional” de um Estado, que é já uma questão recorrente e deveria ser mais focada pela história do design gráfico (lembremo-nos das marcas dos estados fascistas e comunistas do século passado). O que acontece agora é que, contemporaneamente, esta questão é modelada pelas ideologias de mercado, seja através de uma perspectiva socialista ou, no outro extremo, ou através das ideologias chamadas neo-liberais. Mais uma vez aqui, o designer é tudo menos “neutro”. O designer é um indivíduo e como indivíduo está situado numa circunstância histórico-cultural determinada. E as suas posições serão sempre as de um indivíduo impregnado por essas referências. Nunca se poderá colocar numa situação, totalmente independente, tipo olho de Deus, e olhar para o que se passa e pensar que pode sempre assumir uma postura não-responsável relativamente ao que faz e ao que age.

    É tudo para já.

    Abraços

  6. Reactor diz:

    Tenho acompanhado, quase em simultâneo, o debate suscitado pelo post do Mário Moura e aquele que o post do Shaughnessy (“The designer’s virus”) está a despertar no Design Observer. Também no Design Observer, o Michael Beirut pensa os designers como “agents of neutrality”. Reforço o que disse no meu comentário anterior: o design é um mediador activo; a comunicação pressupõe “dois” participantes activos; a suposta “neutralidade”, em design, é manifestamente hipócrita e desprezível eticamente (já no século XIX Kierkegaard falava em “neutralidade armada”).

  7. […] Mais uma vez, isso é pouco provável: muitas das intenções políticas do design não passam de instâncias de filantro-capitalismo, a aplicação da lógica de mercado à resolução de problemas sociais, políticos e humanitários. Assim, é bastante possível que o dinheiro (público e privado) que sustentava os projectos políticos do design desapareça – o que até pode ser uma boa notícia porque, num momento em que se espera que o Estado assuma um papel maior na economia e na sociedade, o design, com todas as suas conotações empresariais, será visto na melhor das hipóteses como uma futilidade, na pior como um símbolo do mercado. […]

  8. […] Há uns anos, já tinha sugerido que a maneira de evitar esta situação seria recuperando a ideia do design como um serviço público: já houve ocasiões em que era habitual uma empresa de design especializar-se a fundo neste género de design, assumindo por vezes nomes semelhantes aos de uma empresa pública ou de um instituto de investigação como a Design Research Unit, responsável pela criação de muita da imagem gráfica da Inglaterra do pós-guerra, anos austeros que não se traduziram em pior design. Mesmo nos Estados Unidos, a terra da iniciativa privada, houve designers, necessariamente individualistas e heróicos que produziram uma imagem coerente para o Estado, tal como Raymond Lowey, por exemplo. Mas, para recuperar iniciativas semelhantes, para voltar a acreditar na ideia do design como um serviço público, seria necessário antes de mais acreditar com mais força na própria ideia do Estado. […]

  9. […] públicos da maior relevância estiveram, durante anos, e estão ainda parcialmente entregues a artistas, arquitectos, ilustradores, ou até mesmo funcionários […]

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