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Se não podes pô-los a pensar uma vez, podes pô-los a pensar duas vezes

O Fim da Sociedade de Consumo

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Dei-me conta outro dia que a sociedade de consumo acabou. Não sei quando foi.¹ Mas acabou com toda a certeza. E não foi a esquerda que deu cabo dela mas o neoliberalismo. Sim. É verdade.

Dentro da doutrina neoliberal não há pior do que um consumidor. Só os idiotas, os inúteis e os parasitas consomem. É o que significa o discurso do “vivemos acima dos nossos meios”. E aqueles artigos que se surpreendem quando os portugueses gastam o seu dinheiro numa Bimby ou vão muito a concertos. Comem fora, mesmo com sacrifícios.

O país reestruturado pela austeridade neoliberal não consome; produz coisas  para exportar, o que significa consumidas longe, noutro lugar, mais estúpido e esbanjador do que nós – é essa a receita que a Alemanha não se cansa de apregoar. À deslocalização do trabalho juntou-se a deslocalização do consumo. É por isso que, num país pobre, se fazem tantas merdas gurmê e de luxo. Obviamente, não são feitas para serem consumidas aqui.

Baixam-se os salários não apenas para baixar custos mas para diminuir o consumo. E os primeiros impostos que o neoliberal pensa em aumentar, os últimos que se recusa a cortar, são os que incidem sobre o consumo, como o IVA.² Em certos estados americanos ultraliberais, cortaram-se todos os impostos menos estes – não funcionou, mas isso é outra história.

Todo o esquema de pensamento neoliberal se insurge contra o consumo. E, como todos os países querem ser austeritários e neoliberais, depreende-se que, numa utopia neoliberal, o consumo seria erradicado do planeta.

Se o capitalismo clássico assentava na livre troca de mercadorias, o que implica oferta e procura, um ecossistema de produtores e consumidores, o neoliberalismo assenta na empresa. Tudo, desde o Estado até ao simples trabalhador, se torna numa empresa. Só se admite a troca se for feita  entre empresas, com o fim de produzir qualquer coisa. É como o jogo das cadeiras, onde perde o último que fica de pé: o consumidor. Assim, num planeta neoliberal a procura é inteiramente assegurada por empresas que vendem a empresas que vendem a empresas – também não funciona. E também é outra história.

E o empreendedorismo mais ridículo (veja-se Miguel Gonçalves) é melhor que o consumo mais sensato – o simples consumo de bens de primeira necessidade, se não for feito dentro de um enquadramento empresarial, é considerado imoral. Aliás, é o que define a pobreza má por oposição à virtuosa. O bom pobre é aquele que, não tendo dinheiro e consumindo o menos possível, se entrega como objecto, como matéria-prima, à boa vontade empreendedora da caridade privada. O mau pobre gasta o dinheiro que recebe do Estado em bifes, Bimbys e concertos. O Rendimento Social de Inserção e o Subsídio de Desemprego são maus porque não têm como pré-condição serem investidos em empreendedorismo mas podem simplesmente ser gastos (e isso não pode ser). É preferível, dentro da moralidade neoliberal, que um pobre se endivide para formar uma empresa do que gaste o dinheiro que descontou para simplesmente comer ou ver um filme quando deixou de ter um emprego ou se reformou.

Naturalmente, há pontos de vista diferentes: dentro do Keynesianismo, o consumo, a procura, é tão importante como a oferta. Se toda a gente e todos os países produzem mas não compram nada, acabam por não conseguir vender nada, e toda a gente fica mais pobre.

Mas a pior consequência do fim da sociedade de consumo é política. Já se sabe que a austeridade neoliberal reduz a participação democrática do cidadão comum a uma formalidade que, de quatro em quatro anos, pode mudar tudo menos a austeridade neoliberal. Mas não é disso que falo. Falo daquele velho argumento do consumo enquanto  democracia. Vocês sabem: o consumidor, ao decidir comprar o melhor produto, pode influenciar empresas, beneficiando os melhores produtos, apoiando as melhores soluções. As más empresas estão condenadas a morrer, abandonadas pelo consumidor. Privatizando serviços públicos está-se a torná-los mais democráticos, etc. Agora, se ainda acreditam nisto, telefonem para o número de atendimento do vosso fornecedor de internet e tentem cancelar o vosso serviço. Usem a palavra “urgência”.  Boa sorte. Sintam o vosso poder enquanto consumidores. O que quero dizer é que, se não há consumo, também não há democracia enquanto consumo. Ou seja, o neoliberalismo não eliminou apenas a democracia clássica mas aquilo que passava por democracia dentro do capitalismo clássico.

Enquanto o liberalismo clássico se organizava em torno da troca, o neoliberalismo organiza-se em torno da concorrência. Tudo concorre com todo. O consumidor puro, não empresarial, não tem hipótese porque não é competitivo. No liberalismo clássico, ainda havia o laissez faire; agora é a avaliação permanente, a competição eterna, em que cada acto do trabalhador só é legitimado se também for uma avaliação parametrizada. Numa universidade já não se preenche um sumário para informar os alunos do conteúdo de uma aula mas porque conta para as avaliações de desempenho. Se o consumidor não tem quase poder nenhum, a avaliação torna-se técnica, administrativa e burocrática ao extremo.

Percebendo que a sociedade de consumo morreu, percebem-se outras coisas, aparentemente sem relação. O fim da crítica por exemplo. A crítica clássica funcionava como um guia de consumo. Os críticos originais eram consumidores idealizados. Mas, o consumidor é agora a escumalha da terra, quando muito uma unidade de medida para medir os visitantes, e o crítico perdeu quase todo o seu poder.

E percebe-se que uma das possibilidades de fazer frente a este sistema, que é como quem diz “ofendê-lo”, é consumindo. Mesmo com pouco dinheiro, com um cêntimo que seja, gastando-o de um modo desprendido, ostensivo, agressivo – a comer, a viver, mas também a ir a um concerto ou a um filme. No que se entender. Poupando-o. Gastando-o. O que interessar a cada um. Se possível sem culpa. Sem ter de inventar uma desculpa empreendedora para isso. E, de preferência, chateando um neoliberal no processo. Estimulando a procura interna, se interessar um argumento económico. Mas é melhor ir a um concerto (garanto) se isso chatear o José Manuel Fernandes. Chateá-lo de um modo inteiramente não competitivo, claro.

Objectivo para 2014: recuperar modos de agressividade, de luta e de crítica, que não sejam concorrenciais ou produtivos. Crítica não-construtiva. E a melhor forma de o fazer é recuperando a crítica como guia de consumo. Um consumo que, se for feito para chatear, será político – o que não é novidade nenhuma: se para o neoliberalismo o consumo é algo a erradicar, para a esquerda ainda é algo político, ainda se acredita que se pode tomar posição boicotando o Pingo Doce, por exemplo.

1. Foucault já se tinha apercebido disso em 1979.

2. Um dos planos iniciais de Passos Coelho para resolver a crise, ainda antes de ser eleito, era aumentar o IVA.

Filed under: Crítica

12 Responses

  1. Este texto escreve algo que eu sentia mas que nunca consegui descrever. Parece que neste momento em Portugal o consumidor é um irresponsável, porque gasta dinheiro em produtos que se calhar forma importados e comisso a balança comercial é prejudicada. Ou porque compra com o salário que o Estado lhe paga, salário este cujo dinheiro foi emprestado pela troika. Etc…

    Também adorei esta expressão “desculpa empreendedora”, podemos criar a empresa (startup) mais estapafúrdia do mundo mas como é empreendedorismo não há qualquer mal em se pedir um empréstimo mas Deus te livre de pedires dinheiro emprestado para comprares uma casa, é preferível continuares a pagar uma renda ao teu senhorio do que pedires para investir num bem.

    Basicamente o consumidor é agora um irrealista irresponsável e ladrão.

    • Rui Vaz diz:

      Atenção que uma casa para habitação NÃO deve ser considerado um bem ou ativo (asset), mas sim uma obrigação ou passivo (liability).
      De resto, é obvio que o consumo é o real motor da economia e o verdadeiro criador de emprego, mas numa economia em que o dinheiro é criado como dívida e com juro incorporado, o consumo é necessariamente limitado.

  2. Luís M. Inácio diz:

    Excelente artigo! Um bem haja!

  3. bota rota diz:

    Vou já comprar mais um par de meias.

  4. mário, só para dar mais força aos teus argumentos, o mesmo se pode dizer em relação ao ensino superior. universidades, politécnicos, faculdades, escolas, departamentos, docentes, todos concorrem com todos e todos têm que dar lucro…. o consumidor (aluno) é o que menos interessa…

  5. […] meu texto sobre o fim da sociedade de consumo ainda continua a ser partilhado. Hoje passou os 700 shares, o […]

    • -> Reencaminhar (V)
      [700+1,2,3,..?]

      Tratar bem ‘desses (possibilidade?) críticos’…s eles ajudassem a despertar um outro ‘crítico’ dentro dos vários possíveis dentro de cada um de nós…talvez a noção de colectividade pudesse estar sujeita a algo mais k um kk automatismo com desfecho indeterminado?”…Falo daquele velho argumento do consumo enquanto democracia. Vocês sabem: o consumidor, ao decidir comprar o melhor produto, pode influenciar empresas, beneficiando os melhores produtos, apoiando as melhores soluções. As más empresas estão condenadas a morrer, abandonadas pelo consumidor. Privatizando serviços públicos está-se a torná-los mais democráticos, etc.”

      • “A lingua de Shakespeare e de Milton pertence a um período da história no qual as palavras dispunham de um controlo natural da experiência vivida. Um autor actual tende a usar muito menos palavras, e as palavras muito mais simples, quer porque a cultura de massas enfraqueceu a ideia do ensino das letras, quer porque o conjunto das realidades das quais as palavras dão suficiente e necessáriamente conta diminuiu criticamente.”

        “Que outras coisas, além de meias verdades, simplificações grosseiras ou banalidades, poderão, com efeito, ser comunicadas a essa audiência de massas semiletradas que a democracia populista reuniu em torno dos mercados?”

        “O inglês falado por Eisenhower nas suas conferências de imprensa, como o usado para vender um novo detergente, não visava nem comunicar verdades críticas acerca da vida do país, nem despertar a inteligência do ouvinte. Foi concebido para se furtar às exigências do sentido ou para as ignorar.”

        http://media.liveauctiongroup.net/i/10812/11307044_1.jpg?v=8CE5324ACE2EE60

        [uigduidsowpwi9pwsisuytssjhshois98guuiay?]

  6. […] Não sou oráculo de ninguém. Escrevo enquanto membro do público enquanto espectador. Sou uma espécie em vias de extinção: um consumidor que se recusa a aceitar os termos de quem empreende, de quem produz, de quem […]

  7. […] São tudo instâncias de uma nova forma de contrato que sujeita uma parte fraca a uma parte forte durante um dado período de tempo. A democracia capitalista entendida como a liberdade do consumidor escolher quem lhe fornece o melhor serviço? Esqueçam. […]

  8. […] preparei em 2012 mas que hoje me parece desactualizada num ponto fundamental, e que já tratei aqui: o fim da sociedade de consumo. A ideia que se pode participar na sociedade através de uma […]

  9. […] exemplo, que neste momento só é autorizado moralmente nos patamares mais ricos da sociedade. Já não existe uma sociedade de consumo mas uma sociedade neoliberal, onde o consumo só é aceite como ponto de partida para produzir […]

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